Todos nós já vimos notícias sobre escolas que tentam lidar com questões de identidade de gênero em crianças e adolescentes, desde alterações de nomes a novas regras de utilização dos banheiros. Em muitos casos, os educadores estão descobrindo o que fazer ao mesmo tempo em que tentam apoiar essas crianças – assim como acontece com o sistema médico.
Este mês, a Academia Americana de Pediatria publicou sua primeira declaração política para orientar as pessoas que prestam assistência médica a crianças e adolescentes que são transgêneros ou que questionam sua identidade de gênero. O documento surgiu em parte como uma resposta direta às perguntas de pediatras, pais e pacientes, segundo uma das autoras, a doutora Cora Breuner, professora de Pediatria e Medicina para Adolescentes do Hospital Infantil de Seattle e da Universidade de Washington.
O objetivo do tratamento é “entender quem cada criança é e apoiá-la nessa jornada”, explica o pediatra e psiquiatra Jason Rafferty, do Centro de Saúde Thundermist e do Hospital Infantil Hasbro, em Rhode Island, que foi o principal autor do estudo. A necessidade, segundo ele, é “criar um sistema onde todas as crianças sintam que têm acesso a cuidados e ao apoio, sem julgamentos”.
Breuner afirma que “muitas vezes, quando há questões de gênero envolvidas, não temos um roteiro”. A declaração propõe um modelo de “cuidado afirmativo de gênero”, baseado na ideia de que “variações na identidade e na expressão de gênero são aspectos normais da diversidade humana” e que os problemas de saúde mental nestas crianças provêm do estigma e das experiências negativas, e podem ser evitados por uma família e um ambiente que os apoiem – inclusive nos cuidados com a saúde.
O termo “gênero diversificado” descreve aqueles cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo que lhes foi atribuído ou às normas que devem ser atendidas.
“A identidade de gênero é uma coisa do cérebro, é a sensação de ser homem ou mulher em sua cabeça; é independente das partes do seu corpo, é independente de por quem você sente atração”, explica o doutor John Steever, especialista em medicina do adolescente e professor assistente de Pediatria na Escola de Medicina Icahn, em Monte Sinai.
“As pessoas podem ter a sensação de ser do sexo masculino, feminino, ambos, algo misturado, todas essas são variações normais. Só porque não são muito comuns não significa que não são normais, e meu trabalho é ajudar pacientes e pais a entender tudo isso”, diz ele.
A nova declaração da AAP tenta desfazer uma variedade de mitos sobre crescer com questões de identidade de gênero, afirma Breuner, como a ideia de que os pais deveriam assumir que essa é apenas uma fase passageira. “E ainda assim, os colegas me olham com desconfiança e dizem: ‘Não é algo que eles deixam para trás quando crescem? Eu aprendi isso na faculdade de medicina’”, conta Breuner. “Eu também. E está errado.”
Às vezes, essas questões surgem em crianças relativamente pequenas. Elas podem falar que não se sentem bem em seus corpos com quatro ou cinco anos, segundo Breuner, ou podem dizer mais especificamente algo como “apesar de parecer um menino, eu sinto que sou uma menina”.
Crescer com a diversidade de gênero significa que crianças e adolescentes são muito mais propensos a serem excluídos e a se tornarem vítimas de bullying e estão sob alto risco de sofrer de depressão, de ter pensamentos suicidas e de cometer suicídio. “As estatísticas são bastante categóricas. Essa questão triplica a taxa de suicídio, aumenta em cinco vezes o risco de ideação suicida, de sofrer intimidação, provocações e abuso. É horrível”, diz Breuner.
“A maior razão para fazer grande parte desse trabalho é tentar evitar alguns dos tradicionais resultados horríveis que os transgêneros ou jovens com questões de gênero acabam tendo que enfrentar”, diz Steever. “Sabemos que muitas dessas pessoas depois que crescem, quando não tiveram apoio, precisam lidar com problemas como depressão, ideação e tentativas suicidas, uso e abuso de substâncias, DSTs, incluindo altas taxas de HIV em mulheres transexuais, violência doméstica, abuso físico e discriminação. O trabalho que estamos fazendo aqui é tentar evitar alguns desses resultados.”
No entanto, as pesquisas, segundo ele, mostram que se as crianças são aceitas, elas se saem muito melhor. Breuner concorda: é o ambiente que coloca em risco a criança, não as questões de gênero. Se a família, a escola e o sistema de saúde forem favoráveis, explica ela, a criança não vai correr nenhum risco a mais do que a população em geral.
Alguns temem que “o cuidado de afirmação de gênero” possa levar as crianças a pensar que têm problemas nessa área, diz Breuner, mas num sentido muito mais amplo, “como pais, só temos que estar abertos a qualquer conversa que nossos filhos desejem ter conosco”.
Rafferty observa: “Parte do processo de afirmação é que os pais entendam seus filhos, e que as crianças entendam a perspectiva dos pais”.
Segundo Breuner, se os pais estão procurando cuidados de saúde para uma criança que tem gênero diverso, devem buscar uma clínica que preste atenção aos detalhes de afirmação da identidade da criança. Os provedores devem perguntar que pronomes a criança usa; os banheiros devem ser inclusivos a todos os gêneros; e quando o responsável faz o registro de entrada, eles precisam perguntar como a criança quer ser chamada. “A clínica deve ter a capacidade para poder mudar o nome de uma criança no sistema”, diz ela.
Algumas famílias decidem usar drogas que bloqueiam a puberdade, impedindo que o corpo desenvolva as características sexuais secundárias do gênero que a criança deseja abandonar. Tais drogas bloqueiam características como o desenvolvimento das mamas em mulheres biológicas e o engrossamento da voz e os pelos faciais em homens biológicos. Steever chama de “botão de pausa”, que dá às famílias tempo para receber aconselhamento e uma chance de ter certeza dos desejos da criança. Alguns adolescentes decidirão continuar com outras intervenções, médicas ou cirúrgicas, às vezes chamadas de transição.
“Eu sempre digo aos pais que não estou com pressa, não tenho um objetivo com isso”, conta ele. Muitas crianças, de acordo com ele, sentem-se muito melhor depois de começarem a transição. Por outro lado, “só porque elas começam a transição não significa que tudo será sempre fácil – as crianças vão precisar de apoio”.
Na adolescência e na idade adulta, essa é uma população medicamente carente, com necessidades que precisam ser atendidas e que podem se tornar complexas durante a puberdade. Se uma mulher biológica está em transição para o sexo masculino, o médico ainda precisa falar sobre os períodos menstruais. E as estatísticas sobre os riscos de suicídio e autoagressão alertam para o fato de que a triagem para a depressão é crucial nas visitas às clínicas de saúde.
Crescer com essas questões pode ser difícil para as crianças e também exige muito dos pais. “Os pais trazem seus filhos para a minha clínica mesmo estando bastante desconfortáveis”, conta Steever. “Eu sei que eles estão fazendo isso pensando: ‘Eu quero ajudar meu filho’.”
Fonte: Zero Hora