No dito popular, afirma-se que “quem espera sempre alcança”. Ou ainda que “depois da tempestade, vem a bonança”. Verdade ou crendice, o fato é que para muitas pessoas, diante de tamanhos sobressaltos, somente essas palavras confortam ou amenizam o filete de esperança que aos poucos se esvai diante das dificuldades do dia a dia. Ainda sofrendo com uma forte recessão, o Brasil aos poucos começa a recuperar sua economia. Porém, no microcosmo chamado Rio de Janeiro o horizonte vindouro ainda se encontra distante. Que o diga Rodmam Cerqueira.
O jovem morador de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, atualmente encontra-se desempregado e teve que interromper os planos de se ver formado no ensino superior. Demitido em seu último trabalho por conta da crise, não bastasse as poucas vagas existentes no mercado, quando a encontra eis que se apetece um novo obstáculo para a sua não contratação: a região onde mora. “Eu estava estudando, mas tive que trancar. Trancar não, eu tive que cancelar porque eu fiquei desempregado. Eu era operador de telemarketing. Sempre trabalhei nessa área, sempre gostei de atendimento ao público. Mas a empresa estava se adequando a atual crise do país, aí como eu era um funcionário antigo e eu recebia um pouco mais que um salário, eles dispensaram todo mundo e contrataram novas pessoas pagando apenas um salário. E (agora para se recolocar no mercado) tem a questão da passagem: eles não pagam mais, as empresas de call center aqui do Centro, as que eu tenho conhecimento, eles só pagam agora passagem modal. Uma pra ir e uma pra voltar. E não contratam mais pessoas da Baixada Fluminense”, atesta.
Apesar dessa limitação com viés separatista (e discriminatório) imposto por determinadas empresas do setor em que atuava para ser contratado, o ex-graduando de Pedagogia (“Eu fui pra Pedagogia por questões de valores porque é um curso mais barato. Eu queria cursar Serviço Social, porque eu sou desse lado social da vida de trabalhar com as pessoas e o próximo”) afirma não entender o porque dessa diferenciação. E se mostra tranquilo com a localidade em que sempre viveu. “Nunca tive esse preconceito com a minha localidade. Você morar na Baixada Fluminense não significa que você seja ‘classe baixa’. Tem muita gente na Baixada que tem dinheiro. Acho que (a dificuldade) é mais por questão de trabalho porque geralmente as oportunidades estão aqui no Centro, não lá. Lá é muito escasso”. Entretanto, Cerqueira reconhece que atualmente as mazelas sociais da Baixada Fluminense – especialmente de Belford Roxo – impactam forte e negativamente na rotina dos moradores. “De um tempo pra cá tá (sic) bem perigoso. Eu, de fato, tenho medo. Porque assim, sempre tem assaltos no período da manhã lá perto de casa, no ponto bem cedo. E eles sempre vão nesse horário para assaltar as pessoas que estão no ponto. Eu já vi gente armada passando de moto, mas comigo nunca aconteceu nada. Acho que isso é o que impacta mais”, diz ele.
O que nunca foi impactante – para si e para sua família – foi a sua sexualidade. Bem resolvido com o que sentia e se percebia, afinal, “com sete anos eu já sabia que era gay”, Rodmam afirma que nunca precisou contar que era homossexual, uma vez que toda sua família já sabia desde muito novo. “Nunca tive esse problema de falta de aceitação. Nenhum conflito. Minha mãe também não. Eu acho que por ter um tio gay, pra ela foi mais fácil. E ela sempre soube o filho que ela tinha dentro de casa, até mesmo pelo meu jeito. Pra você ter noção, eu nunca cheguei pra minha mãe e disse ‘sou gay’. As minhas atitudes disseram pra ela. Nunca precisei fazer isso. Nem com a família do meu pai e nem com a família da minha mãe”, conta. Apesar de entender que faz parte de uma exceção diante de uma regra onde a maioria dos LGBT’s são expulsos de casa ou enfrentam dilemas pesarosos por conta da sexualidade ou da identidade de gênero, o jovem acredita que caso tivesse uma relação mais estreita e próxima, com relação a criação, com seu pai a aceitação não seria tão tranquila.
“O meu pai não sabe. Mas não existe essa necessidade de saber, porque ele não tem nenhum tipo de influência na minha vida. A minha tia fala que ele se faz de cego. Meu pai já é um senhor e eu acredito que, talvez, não (aceitaria) porque meu pai é jogador de futebol veterano. Assim, o tempo que a gente conviveu com meu pai ele levava eu e meu irmão pra jogar bola domingo. E sabe quando aquilo não combina com você? Era o meu caso, meu Deus! Acho que por parte dele, talvez (tivesse algum problema com a sexualidade), por conta desse convívio desse meio em que ele vivia do futebol. Porque tem essa questão do machismo ‘ah seu filho é frutinha’. Mas não chegou nesse ponto não”, revela ele. Mas se faltou-lhe uma referência masculina do pai, foi no tio também homossexual, que ele encontrou uma referência paternal. “Sim, meu tio é meu conselheiro. Eu falo pra ele que se eu conseguir ser metade do homem que ele é, eu estou satisfeito. Meu tio é incrível. E ele me dá muito conselho. Eu vejo ele beijando na boca, ele me vê beijando na boca. Ele tem 42 anos. É muito jovem pra idade dele”, conta orgulhoso.
Religião e Intolerância Religiosa
Espiritualizado, durante pouco mais de uma hora de conversa Rodmam sempre encontrou um jeito de justificar suas respostas através de uma locução adjetiva de fé. Segundo ele, “eu não consigo falar sobre nada na minha vida sem citar o aspecto espiritual. Eu sou uma pessoa espiritualizada, preciso dessa espiritualidade pra viver e não me deixar levar por uma coisa negativa”. E foi na Umbanda que ele casou suas crenças com sua filosofia de vida. Há sete anos professando a fé em uma religião de matriz africana, Cerqueira afirma que “tinha uma coisa mais forte pedindo para mim entrar”. Questionado sobre a acolhida recebida por muito homossexuais em religiões afro em detrimento de outras, o jovem afirma que isso acontece por conta das características dos preceitos das matrizes religiosas afro-brasileiras.
“Nessas religiões não há essas separações, discriminações e preconceito. Eles abraçam todos. Se alguém chegar num centro espírita ele não será olhado torto como, digamos, será olhado (por ser gay) dentro da igreja evangélica, principalmente que são as mais radicais. Ninguém vai dizer pra ele que a sua opção sexual é errada e que você tem o diabo no corpo e não está salvo. Que Deus não vai te perdoar. Não vou generalizar porque pode até acontecer (em religiões afro), mas não costuma ser”, explica. Entretanto, se internamente existe o respeito e a tolerância, nem sempre o mesmo também ocorre fora. Sobre a intolerância religiosa que muitos umbandistas e candomblecistas sofrem, afirma que a prática reside na ignorância das pessoas e na atuação de má fé praticados por outros segmentos religiosos. “Comigo diretamente nunca aconteceu (intolerância). (Mas), de fato, a ignorância das pessoas para com essa religião específica, eu acredito que é por parte da igreja evangélica que são mais, mais tradicionais. Então tudo que foge do que é certo para eles é visto como errado”, acredita ele que também contemporiza: “e também por pessoas que acabam marginalizando a própria religião. O famoso “trabalho” que a mulher vai lá porque quer amarrar o marido, vai fazer trabalhar pra matar a outra, mais ou menos assim. E nós somos contra essas coisas. Nós somos da linha da caridade, porque esse é o intuito real da religião”, fala ele sobre a vertente em que pratica e que é conhecida como Nação Omolokô (Umbanda cruzada com Angola).
Outro ponto desestabilizador é a união de política + religião. Assertivo, Rodmam repudia a junção das duas vertentes como paradigma social quando atuam para interferir no livre exercício de manifestação de fé do outro. “O Estado é laico, mas isso é fachada. É uma máscara. É uma mentira, o estado não é laico. Aquela bancada evangélica que a gente tem lá no Senado é prova viva disso. Eles querem interferir na sua liberdade de expressão e eu sigo na tese de que política e religião não devem se misturar. Você agredir uma pessoa porque a religião dela é diferente da sua, isso tá errado”, critica.
Críticas essa que ele também revela servir para a comunidade LGBT como um todo. “A classe LGBT é muito desunida porque a gente se quiser elege uma pessoa que vai nos representar lá, de fato. As pessoas não têm conhecimento do seu poder de voto. Você é gay, eu sou gay, ele é gay e a gente tem o mesmo pensamento, quer alguém que faça alguma coisa por nós, que lute pela gente e nos dê voz, vamos se juntar e vamos eleger. Acabou. Eu fiz uma pesquisa e acho que são 18 milhões de homossexuais (no Brasil). Imagina se todos se juntarem? E aí, quem vai nos tirar? Só se nos matarem. Só se fizerem como fizeram com nossa Marielle (Franco). A morte dela de fato é um ataque contra a nossa democracia porque eu vejo que foi uma mistura de tudo: de política, de machismo, com racismo. Ela tocou na ferida e ela pagou um preço muito alto por isso. E incomodou sim uma mulher negra, da favela, chegar e conquistar um lugar de espaço num meio importantíssimo que é a política e fazer um trabalho correto. Estava sendo notada por isso e incomodava muita gente. Ela não defendia bandido, ela lutava pelo Direito Humano”, comenta.
LGBT’s
Apesar de reconhecer a importância até mesmo política da comunidade de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais na sociedade, conforme opinado acima, Rodmam enxerga e lamenta porém a reprodução de estigmas e opressões que ainda encontram-se no meio LGBT e que dificulta uma coesão entre pares. “É uma classe hipócrita e preconceituosa. É muita hipocrisia. (Percebo) gordofobia e a própria homofobia, é incrível. O gay másculo não se sente, digamos, confortável com o gay afeminado. No meu caso (já me afetou) por acharem que eu sou afeminado. Eu sei que eu não sou exemplo de masculinidade, de cara másculo, mas eu não me considero afeminado. Mas também não teria problema nenhum de ser afeminado. O próprio negro não gosta do negro, dependendo do tipo de relacionamento. Estava eu e minha tia conversando sobre isso e ela falou que o cara não ficou com ela, porque ela era negra e o cara gostava de branquinha. E ele era negro. Será que é só questão de gosto pessoal? É muito relativo e difícil pensar que é só gosto pessoal. Eu digo que é uma vulgaridade, tem a ver com o caráter. Se você fala para o cara que você é assumido, ele acha que você é um gay extremamente expressivo com trejeitos. E não é nada disso. Não tem nada a ver você ser assumido com você ser expressivo. Isso é preconceito: você definir o gay afeminado com o passivo e o gay másculo como ativo”, esbraveja.
Mas apesar das duras palavras, ainda é possível superar esses desafios. Basta querer. “É só começar a criar algum tipo de espaço para que isso aconteça, pra que eu possa conhecer você e você me conhecer, independente de eu ser gay e você ser trans, de eu ser travesti, você ser da prostituição ou não. Tem que se criar espaço pra isso, pra juntar essa gente toda. Porque é o que não existe. A travesti tá ali, o bissexual ali, o gay tá aqui e a lésbica tá ali. E fora que a travesti é a mais discriminada pela vida que leva”. E a coisa piora se for num aplicativo de pegação, fonte de desejos, encontros, corpos e também opressões. “. É o que você mais vê (opressão e reprodução de estigmas). Não curto gordos, não curto negros, não curto afeminados, não curto drogados e etc, sou discreto. Não é o aplicativo, é a própria pessoa que já é ignorante e preconceituosa. Sim, aquilo ali é um açougue humano, fato. Mas é aquela questão, é a busca por essa imagem padrão que as pessoas estão criando e a sociedade quer. Então se você é um cara boa pinta, tem um corpo legal, tem um cabelo liso, é branquinho, é sarado, você tá mil vezes na minha frente. Se você é negro, mas tem um corpo legal você se torna um objeto apenas por ter um corpo legal”, explica.
Algo que, segundo ele, vai na contramão daquilo que busca em uma outra pessoa. “Eu não tenho um padrão definido. Eu tenho que olhar pra você e gostar de você. Até porque pra mim é uma coisa que vai além de você olhar. É alguma coisa ali que te traz o interesse. Eu provavelmente não tenho tantas chances por não apresentar um perfil padrão. Meu ex-namorado era fora desses padrões estabelecidos, mas eu gostava dele. Porque ele era gordinho, ele era careca, então geralmente ele é descartado né. Mas ele tinha alguma coisa diferente e eu gostava dele”, diz.
Prevenção
Sexo seguro é palavra de ordem nas relações. Entretanto, o jovem admite já ter sido imaturo em relações onde não utilizou a camisinha e afirma que é essa mesma imaturidade que leva inúmeros outros jovens a negligenciarem o sexo. Hoje em dia a gente tem um leque de informações em vários meios de comunicação, então assim, não sei se as pessoas são preguiçosas, se não estão nem aí ou se deixam levar pelo momento. Sim, já transei sem camisinha com meu ex-namorado. Porque era meu namorado, mas no início existe sim uma prevenção. Tem que ter. Tem que ter um diálogo. (Sobre o aumento das infecções) é esse misto de coisas, é o comodismo. Tenho certeza que isso varia muito da maturidade da pessoa. Muitas pessoas não tem maturidade ou não querem ter maturidade. Querem curtir ‘ah eu sou jovem, tô com 18 anos, sou branco, sou bonitinho’ e é isso. Mesmo com todas as informações”, conclui.
E é essa realidade que reafirma a importância de espaços plurais como o do Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens para com a temática da prevenção. “Isso tem que ser abordado nas escolas desde cedo. E projetos assim têm que ser mais divulgados. Porque você fala de AIDS e as pessoas relacionam logo ao homossexual e esquecem que a taxa de héteros infectados também é grande. E aí? Tenho certeza disso (que tá ligado ao estigma e preconceito)”, resume.
Futuro
Simples e objetivo, Cerqueira faz planos. Mas não cria expectativas do amanhã. “Eu quero estar estudando, fazendo faculdade. A gente (sic) tem que ter perspectiva, mas é tudo muito incerto. A gente não sabe o dia de amanhã. Eu acho interessante viver o dia de hoje. Tem que pensar no hoje até pra conseguir algo de bom no amanhã. O foco é hoje. O futuro a Deus pertence”, filosofa.
Texto: Jean Pierry Oliveira