Depois de negros, índios e pessoas com deficiência e de baixa renda, as universidades federais têm criado uma nova política de cotas para atrair alunos trans, grupo que ainda têm presença pequena na educação superior.
Pesquisa da Andifes (entidade de reitores) com 424 mil estudantes matriculados nas federais mostra que apenas 0,1% se declarou homem trans e 0,1% mulher trans.
Segundo levantamento da Folha, há cotas específicas para alunos dessa categoria em ao menos 12 das 63 universidades públicas —equivale a 19% do total.
A inserção de trans no mundo acadêmico passou a ser registrada a partir da segunda metade desta década.
Esse tipo de cota tem ganhado mais fôlego na pós-graduação. Nove universidades federais, como as do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul e de Brasília, mantêm vagas para transgêneros em ao menos um de seus programas de mestrado e doutorado.
Já nas federais do ABC, da Bahia e do Sul da Bahia, as cotas também se estenderam aos cursos de graduação. A seleção de cotistas trans é feita em processos seletivos promovidos pelas próprias instituições ou por meio do Sisu, que utiliza notas do Enem.
Na pós, os cotistas trans são escolhidos, geralmente, em fases que envolvem análise de currículo, entrevista e prova.
O MEC (Ministério da Educação), sob a gestão de Abraham Weintraub, diz não ter nenhum estudo para ampliar o número de cotas para a população trans e ressalta que as universidades têm autonomia para estabelecer suas políticas afirmativas.
Professores ouvidos pela Folha afirmam que a pós-graduação têm sido mais célere na criação de vagas aos transgêneros, devido à menor burocracia. Na graduação, é um colegiado formado por professores, alunos e técnicos que delibera sobre temas que impactam a comunidade.
A Federal do ABC, na Grande São Paulo, vai receber em junho a primeira leva de alunos transgêneros aprovados via Sisu em seu recém-criado programa de reserva de vagas.
A universidade separou 32 vagas para a iniciativa, cerca de 1,5% do total. Destas, 15 foram ocupadas.
Tatiana Lima Ferreira, pró-reitora adjunta de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas da UFABC, diz que o percentual oferecido foi decidido tomando por base o tamanho da população trans dos Estados Unidos, que beira 1,8%. “Não temos estudos consolidados no Brasil sobre os trans, mas esse percentual será revisado sempre que possível nos próximos anos.”
Filipe Zana, 22, é homem trans e um dos aprovados por cota no bacharelado em Ciências e Humanidades da instituição federal paulista.
Filho de um ajudante de pedreiro e de uma auxiliar de limpeza, vê a chegada de seu grupo à universidade como um movimento sem volta, porém tardio. “Queremos parar de ser o objeto de estudo para ser o sujeito que pesquisa. Prestem atenção: quantos são os artigos escritos por pesquisadores trans que estudam vivências trans?”.
Zana tem participado neste mês de aulas de reforço em leitura e escrita acadêmica. A dúvida do calouro está mais nas disciplinas que precisará escolher do que na forma como será recebido por sua turma. “Já na matrícula eu me senti abraçado”, conta.
Os aprovados assinaram uma autodeclaração afirmando serem pessoas trans. Não foi preciso apresentar laudos psicológicos ou outros exames. Uma comissão foi formada para garantir a permanência dos novos estudantes e apurar denúncias de fraudes.
Foi o Prisma, coletivo LGBT, que pautou a implantação de cotas trans na Federal do ABC. Leona Wolf, 37, cientista social e integrante da entidade, diz que deparou com muito desconhecimento sobre a causa trans entre os debatedores da política inclusiva.
“Começaram a dizer que ao implantar cotas para alunos trans, a universidade discriminaria gays e lésbicas. É por esse nível que a discussão foi caminhando”, afirmou.
A principal demanda dos coletivos LGBTs e das universidades é pela ampliação da participação de mulheres trans entre os cotistas. Na Federal do ABC, apenas Samanta, 17, efetivou matrícula de um total de 15 aprovados.
A adolescente, autorizada pelos pais a divulgar apenas seu primeiro nome social, diz ser privilegiada. Fala inglês, concluiu a formação básica na idade ideal e conseguiu apoio da família desde que iniciou sua transição de gênero.
“Sou a exceção da exceção. A maioria é expulsa de casa quando sai do armário. Sem profissão, elas acabam na prostituição e no tráfico de drogas”, diz a estudante.
No país que mais mata trans no mundo —163 casos em 2018, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais—, o ideal é proteger a infância das pessoas transgêneros para elevar o nível educacional, diz Keila Simpson, presidente da entidade.
“É nessa fase que eles abandonam os estudos ou por preconceito ou por falta de apoio da família e da escola.”
Primeira a criar cotas na graduação para alunos trans, em 2017, a Universidade Federal do Sul da Bahia tenta reverter a baixa adesão de mulheres trans em seus cursos.
A instituição criou um cursinho preparatório para o Enem em Itabuna (317 km de Salvador) para travestis e trans, conta Sandro Ferreira, pró-reitor de Integração Social.
A iniciativa virou objeto de estudo do mestrado da professora de história Isabella dos Santos Silva, 32, também mulher trans e que assumiu a coordenação do projeto. Ela conta que foi em pontos de prostituição para convencer as meninas a estudar. “Entre 16 participantes, sete conseguiram entrar no ensino superior”, diz Isabella.
A continuidade das atividades do cursinho, segundo o pró-reitor, ficou comprometida. A instituição foi a mais afetada no país pelos cortes de verba do MEC, com redução de 53,96% de seu orçamento discricionário.
O MEC diz não ter “gestão sobre onde e como a instituição utilizará os recursos”.
Para Yuji Gushiken, da pós em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, programa que também mantém assentos para pesquisadores trans, o trabalho de Isabella repercute não apenas porque ela virou uma mestranda.
“O que importa é se as pesquisadoras trans conseguirão se inserir academicamente e repassar o que aprenderam de alguma forma. Cabe à universidade ser um espaço potente para isso.”
VEJA UNIVERSIDADES COM COTAS PARA ALUNOS TRANS*
UFABC (Universidade Federal do ABC)
Modalidade: graduação
Cursos: bacharelado em ciência e tecnologia e bacharelado em ciências e humanidades
Vagas: 32
UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso)
Modalidade: pós-graduação
Cursos: estudos de cultura contemporânea e estudos de linguagem
Vagas: varia por edital
UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Modalidade: pós-graduação
Cursos: comunicação, sociologia, educação, artes cênicas, história, psicologia social e institucional, saúde coletiva e ensino de história
Vagas: variam por edital
UnB (Universidade de Brasília)
Modalidade: pós-graduação
Curso: comunicação
Vagas: variam por edital
UFPR (Universidade Federal do Paraná)
Modalidade: pós-graduação
Curso: desenvolvimento territorial sustentável
Vagas: 6
UFBA (Universidade Federal da Bahia
Modalidade: graduação e pós
Cursos: todos
Vagas: variável
UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)
Modalidade: pós-graduação
Cursos: 30, entre eles ciências agrárias, ciências sociais, comunicação
Vagas: 1, por curso
UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia)
Modalidade: graduação e pós
Cursos: bacharelados e licenciaturas interdisciplinares
Vagas: ao menos 50 vagas na graduação; na pós, vagas variam por edital
UFF (Universidade Federal Fluminense)
Modalidade: pós-graduação
Cursos: sociologia, psicologia, entre outros
Vagas: variam por edital
UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina)
Modalidade: pós-graduação
Cursos: educação e ciências humanas, entre outros
Vagas: variam por edital
UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco)
Modalidade: pós-graduação
Cursos: 41, entre eles, botânica, física aplicada, ciências do solo
Vagas: variam por edital
UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Modalidade: pós-graduação
Cursos: artes da cena, comunicação, dança, educação, filosofia, políticas públicas em direitos humanos e psicologia
Vagas: variam por edital
*informações sobre cursos de pós contemplam os editais mais recentes
Fontes: universidades
Fonte: Folha de São Paulo