Durante os anos 1990 e 2000, a resposta da sociedade brasileira à epidemia de HIV e aids foi construída como um exemplo para o mundo: um tipo de modelo para outras sociedades, principalmente no Sul Global, que mostrava que até em países de renda média era possível desenvolver políticas progressistas capazes de garantir os direitos humanos das pessoas afetadas e infectadas e também conter a epidemia. Construída ao longo de governos com abordagens distintas — durante as gestões de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva — a política da aids foi um exemplo vivo da importância da democracia, do debate público e do respeito mútuo de pessoas e comunidades diversas capazes de discordar sobre muitas questões, e ao mesmo tempo buscar o diálogo.
Este diálogo tinha o propósito de construir políticas de saúde democráticas e inclusivas, além de garantir que esta formação no campo da saúde contribuísse para a construção de uma sociedade mais justa. Com a solidariedade como ponto de partida ético-político, a política da aids combatia com firmeza a terceira epidemia, marcada pelo estigma e discriminação, que se disseminaram como consequência da primeira epidemia da infecção pelo HIV e da segunda, marcada pelas doenças associadas à aids. Ainda sobre esta época de ricas experiências, a política foi capaz de aproveitar avanços científicos para garantir acesso ao tratamento e cuidados necessários para as pessoas vivendo com HIV e aids (PVHA), e construir campanhas e ações de prevenção com base nos direitos humanos e na cidadania das pessoas e comunidades vulneráveis diante da infecção pelo HIV.
Lamentavelmente, a partir dos anos 2010, já na quarta década da epidemia, a história começou a mudar. Na época, não percebemos esta mudança com clareza, mas já vivíamos grandes conflitos em relação às políticas e programas para enfrentamento da epidemia. A bancada religiosa e conservadora no Congresso Nacional começou a atacar campanhas de prevenção e usar as ações como moeda de troca para assegurar o seu apoio às políticas econômicas dos dois governos de Dilma Rousseff e também do governo interino de Michel Temer.
Campanhas educativas e intervenções de prevenção para as populações mais afetadas pela epidemia (gays e outros homens que fazem sexo com homens, travestis e mulheres trans, prostitutas, usuários de drogas injetáveis) foram censuradas e canceladas. O retorno do estigma e da discriminação incendiou o pânico moral sobre práticas sexuais não normativas e reacendeu projetos de lei e chamadas a favor da criminalização da infecção pelo HIV. Revendo este período, percebemos que uma polarização política crescente e os primeiros sinais do rompimento com a democracia já começavam a aparecer e a comprometer o modelo brasileiro de enfrentamento da epidemia.
A partir de 2019, com a instalação do governo de Jair Bolsonaro, nós testemunhamos o desmonte muito mais rápido e avassalador desse modelo. Materiais informativos foram recolhidos para serem censurados. Campanhas de prevenção para populações chaves, vistas como minoritárias, foram abandonadas em favor de informações vagas dirigidas a um suposto público majoritário. O Departamento de IST, AIDS e Hepatites Virais foi rebaixado e subordinado a uma nova unidade, designada Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis — o que literalmente excluiu a palavra ‘aids’ das prioridades do Ministério da Saúde. E discursos discriminatórios com relação às populações mais afetadas pela epidemia foram elevados às esferas mais altas de poder no Estado brasileiro. Tudo feito sem nenhum processo de consulta, debate público ou diálogo democrático. Encerrou-se definitivamente o tão respeitado modelo brasileiro de enfrentamento da aids.
O que podemos esperar em 2020? Ninguém tem uma bola de cristal para adivinhar com certeza, mas com base na história do enfrentamento ao longo das últimas décadas, é difícil ser otimista. Dos programas governamentais, infelizmente, não podemos esperar avanços. Em tempos de terraplanismo, distorção do significado dos direitos humanos, ataques contra a suposta ‘ideologia de gênero’ e a educação sexual compreensiva, priorização dos interesses da maioria, demonização da sociedade civil, e glorificação do estigma, preconceito, discriminação e violência, não há política eficaz de enfrentamento da aids.
Para quem ainda tem compromisso com a luta contra HIV e aids (e a nossa única esperança é que ainda há muitas pessoas com este compromisso, tanto na sociedade civil quanto no Estado), é hora de começar de novo. É hora de levantar de novo a bandeira da solidariedade e da cidadania. É hora de lembrar que o caminho para o controle da epidemia depende da defesa dos direitos humanos e do compromisso com a justiça social. Caminhando para a quinta década da epidemia, e refletindo sobre tudo que passou, temos que lembrar uma das primeiras lições que aprendemos: silêncio ainda é igual à morte, da mesma forma que ação ainda é igual à vida. Viva a vida!
■ Diretor-Presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), professor visitante sênior do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva (IESC/UFRJ) e professor titular emérito de Ciências Sociomédicas e Antropologia da Columbia University.
Fonte: Radis