Na última quarta feira a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) recebeu a visita de uma equipe de documentaristas. “Quando Ousamos Existir” tem como objetivo retratar a história da militância LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros) no Brasil tendo como motivação os seus 40 anos em 2018. O longa que também será dividido em uma série de curtas é dirigido e organizado por Cláudio Nascimento, do Grupo Arco Íris (GAI) e Márcio Caetano, professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), do Rio Grande do Sul, com a assistência de gravação e edição do jovem Fábio Rodrigues.
Segundo Caetano, “não há como falar do ativismo LGBT sem falar da AIDS” e imbuído disso chegou as dependências da ABIA em busca de captar com suas lentes, em uma longa entrevista, o contexto da epidemia da AIDS e militância do diretor-presidente da instituição Richard Parker. “A discriminação e o estigma foram terríveis sob os pontos de vista sexual e social. Minhas memórias da época foram do terrível sofrimento das pessoas e a falta de apoio de fora da comunidade gay. Foi uma construção da solidariedade na comunidade, mas você tinha que se posicionar e fazer alguma coisa porque a sua vida e a vida de seus companheiros estavam em jogo. Foram anos bem dramáticos”, relatou Parker em uma de suas falas. Outros importantes assuntos abordados na gravação do documentário por Richard Parker foram as questões de gênero, atividade x passividade, identidade masculina, prevenção e etc. “Eu estava na primeira geração de entender a diferença como legítimo e (que) buscava os direitos sexuais como garantia fundamental”, afirmou ele sobre sua atuação dentro do contexto LGBT no Brasil a partir da construção de seu olhar estrangeiro.
Revisitando seu passando, Parker elucidou importantes momentos da história da epidemia de AIDS no Brasil como a conquista da sociedade civil no que tange ao acesso universal de medicamentos antirretrovirais no serviço público de saúde, redução de danos, políticas públicas para pessoas vivendo e convivendo com HIV e AIDS e pressão sobre governos como aqueles ocorridos no final dos anos 80 e 90, pós redemocratização. “Os anos 80 foram do poder do ativismo cultural, de bater na cara do conservadorismo e dizer ‘não vamos nos silenciar’. E surgiu por causa da opressão vivida pelas pessoas. Colocamos a coisa no debate público sobre sexualidade”, disse o diretor-presidente acerca da necessidade de repolitizar as respostas dos movimentos (LGBT, AIDS e outros) face as forças, partidos e setores conservadores na política e sociedade. Quando perguntado sobre o sucesso do programa brasileiro de resposta a AIDS, Parker indagou que o país “teve sorte de a epidemia ter dado o seu boom no momento em que o Brasil vivia um período de redemocratização. Tal fato sem dúvidas facilitou a construção do melhoramento do programa, já que o mesmo foi repensado como uma forma de garantir acima de tudo os direitos humanos daquela população. ” Mas ressaltou ainda que também é importante formar uma nova geração de ativistas, de pessoas jovens, “pois estamos precisando reunir forças contra o conservadorismo dos últimos anos”. Sobre métodos de prevenção e o aumento da incidência do HIV em jovens, Parker sintetizou que “a prevenção biomédica muitas vezes é adotada porque possibilita não falar das coisas ‘sujas’ da sexualidade. E como a gente abandonou o trabalho dos tempos anteriores de se falar sobre sexo abertamente, valorizando a prevenção, quando perdemos isso temos visto o retrocesso, com o número crescente de novas infecções especialmente entre a população mais jovem. Não podemos deixar de encarar de maneira positiva, de falar de sexualidade com prevenção, que é o que temos como premissa aqui na ABIA. É necessário mantermos sempre a sexualidade como centro da batalha de prevenção”.
Para finalizar, fazendo um balanço sobre sua trajetória em quase quatro décadas de epidemia de AIDS, Richard Parker reconhece ter sido um privilegiado por tantas realizações e ganhos professorais, sexuais e culturais absorvidos e proporcionados pelo ativismo.
Vagner de Almeida e o Ativismo Cultural
No segundo dia de gravação para o longa “Quando Ousamos Existir” o personagem da vez foi o Assessor e Coordenador do Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens da ABIA, Vagner de Almeida. Falando primeiramente de sua vida antes da militância, a partir da infância, Almeida revelou como o conservadorismo em sua família reprimia sua sexualidade e o deixava em conflito toda vez que deparava-se com desejos por outros rapazes. “Foi em Petrópolis onde dei meu primeiro beijo num homem. Criou-se um laço muito forte com o colega que beijei, mas tinha também uma opressão muito forte para evitar sermos descobertos como homossexuais. Aliás, viados, mariquinha, afeminado, zica, porque era assim que éramos chamados na época”, revela ele.
E todo esse contexto acentuava a relação com seus pais e desafiava os costumes da época. Mas também o levou para um caminho que não esperava. “Eu apanhava muito, porque também sempre fui muito truculento, muito brigão, garoto de rua mesmo e minha mãe não queria um troglodita em casa. E aí você começa a pensar outras coisas e eu comecei a me engajar em ativismo através de ações da igreja católica. Dali a coisa só evoluiu e eu engajei com o movimento de AIDS, quando lá em 83 comecei a perder amigos doentes pela epidemia”, revela Almeida. O diretor de cinema revelou ainda que aos 40 anos rompeu relações com seu pai quando este demonstrou claramente a sua homofobia.
Uma vez dentro do movimento, Almeida fez do Teatro e das Artes um aliado no combate ao estigma, preconceito e conservadorismo da época. Foi seu encontro com o Ativismo Cultural. “Adeus. Irmão. Durma. Sossegado” (que com suas iniciais formam a palavra AIDS) foi seu primeiro trabalho no Rio de Janeiro e abordou as agruras da época com o HIV e AIDS e os primeiros casos e perdas públicas dos amigos para o vírus. “Eu vivi em São Francisco, nos EUA, durante o auge da epidemia – porque lá era o epicentro da AIDS – e foi um período de muitos aprendizados, apesar de triste. Voltei cheio de ideias para o Brasil para colocar em prática em meus trabalhos”, conta ele. E completa: “Eu vou revelar algo publicamente que sempre me questiono: eu não sei como não me infectei. Porque eu passei por todo o processo de quem se infectou na época. E vai se saber porque (eu) não”, indaga.
Entrada na ABIA
“A minha vida no ativismo da AIDS não começou na ABIA. Ela já veio com uma bagagem, lá em 84/5, e adquirida desde o Bay Area (nos EUA). Fui convidado pelo Betinho e pelo Herbert Daniel para conhecer a instituição e daí fomos criando parcerias e também alguns inimigos e desafetos”, fala Almeida sobre sua entrada na instituição. E com o primeiro financiamento de um parceiro internacional, em 1989 foi possível iniciar o Projeto Homossexualidades, inaugurando o Ativismo Cultural na ABIA e que ficou marcado pelo desenvolvimento da Oficina de Teatro Expressionista (OTE) Sexualidade e AIDS para Homens que Fazem Sexo com Homens. “Havia muita tristeza e dúvidas no coletivo dos participantes e eu queria algo que trouxesse alegria, esperança, algo que pudéssemos dialogar com leveza, um pouco de alívio para essas pessoas e daí veio a ideia das oficinas de teatro expressionista”, pontua.
Transgressora era a atividade, o diretor não teve pudor ao tratar a sexualidade e com ousadia explorou a nudez, a sensualidade e o prazer em suas oficinas, artigos e a peça que culminou no histórico Cabaret Prevenção. “E aqui essas pessoas foram se fortalecendo no ativismo social, pelo teatro, que depois foi para o cinema e que com o alcance do audiovisual está no mundo inteiro”, conclui. Sobre as lições do passado e o que pode ser (re)aplicado no presente, Almeida não se mostra saudosista. Porém, reconhece todos os avanços. “A tecnologia ajuda muito e me ajuda a avançar positivamente. O que podemos fazer do passado é a interação física que está banida. Hoje em dia não conversamos, não abraçamos, não beijamos. É tudo por aplicativos. Então, o expressionismo de 1993 é diferente do expressionismo de 2018. As pessoas se tocavam, se falavam cara a cara, e se permitiam. Hoje nossa conversa começa e termina no celular”, atesta.
Acerca da necessidade e proeminência de novas lideranças Almeida enxerga muitos líderes autocentrados, ralos, rasos e poucos dedicados ao coletivo. E alerta: “Há uma profunda necessidade de lideranças sérias. De voluntários e voluntariado. Estamos muito precários e (falta lideranças) até mesmo do nosso próprio movimento. O projeto social não é seu. É coletivo”. Indagado sobre se vale a pena ser ativista, o coordenador advertiu que “vale a pena sim porque senão teríamos que repensar muitas outras coisas. Não haverá luta, se não tiver resistência. Ativismo não é uma construção que se aprende na universidade. É algo que vem de dentro de você. Por algo que te faz acreditar num mundo melhor, ele tem que ser erguido, flexível como bambu, ”, finaliza.
Além de Richard Parker e Vagner de Almeida, o vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, Veriano Terto Jr também foi entrevistado pela equipe. Segundo o diretor do longa, Claudio Nascimento, “até o momento mais de 100 ativistas já foram entrevistados pelo país, o que pode ser considerado um dos maiores mapeamentos ao longo dos últimos anos”. “Quando Ousamos Existir” é uma iniciativa do Laboratório Nós do Sul, do Centro de Memória João Antônio Mascarenhas e do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande (RS). A previsão de estreia do documentário é para o final de 2018.
Texto: Jéssica Marinho e Jean Pierry