Foi por volta das 18h30, da última quarta feira (26), que oficialmente o “Seminário de Capacitação em HIV Aprimorando o Debate III” foi aberto no Scorial Hotel, no Flamengo (RJ). Em sua terceira edição em 2019, dessa vez a temática norteadora girou em torno da “Prevenção das IST/AIDS: Novos Desafios na quarta década da epidemia”. Richard Parker, diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), e Gabriela Calazans (Pesquisadora do departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP) foram os responsáveis pelas boas-vindas do evento e condutores do debate.
“Temos enfrentado nos últimos tempos dificuldades terríveis por conta do conservadorismo no HIV/AIDS, no Brasil e no mundo. Mas desde o começo da AIDS o estigma, preconceito e a opressão foram desafios para a prevenção da AIDS”, relatou Parker. Um dos grandes marcos para ele desse período, porém, foi o trabalho de Herbert de Souza – o Betinho – na luta pelo sangue seguro e HIV/AIDS em prol das comunidades mais afetadas e a sociedade civil no geral. “E foram as comunidades mais afetadas que inventaram a expertise das tecnologias de prevenção que deram importantes respostas para a redução de danos. Isso até a comunidade científica cooptar o protagonismo com a biomedicina. Por isso este seminário é importante: para resgatar o histórico que não se fala mais, mas é importante para o que estamos vivendo no enfrentamento da epidemia no Brasil”, justificou ele.
Prevenção do HIV e da AIDS – A história que não se conta/a história que não te contam
Esse foi o tema-título da apresentação de Gabriela Calazans, da FMUSP, após a fala de Parker. “O objetivo dessa apresentação se propõe ao diálogo intergeracional sobre as respostas ao HIV e AIDS, de forma histórico-reflexiva, para as pessoas que chegaram no campo da prevenção nessa última década, tão desafiante e com novos dilemas”, explicou ela.
Trabalhando com AIDS desde 1996, após uma especialização em Saúde Coletiva – sua formação é em Psicologia – ela se aproximou do campo da prevenção, movimento social e informação como carreira profissional. As respostas político-institucionais de sua pesquisa sobre a epidemia de AIDS no Brasil, datam pelos idos da década de 80, com o processo de redemocratização, o movimento homossexual (1ª onda da epidemia), a politização da sexualidade e o Movimento Sanitarista.
Saltando para a década de 1990 as ações de prevenção nesse momento “foram voltadas para o comportamento e os paradigmas da vulnerabilidade. É o pensamento sendo trabalhado como a ponta de um iceberg, mas que tem uma complexidade maior. É o tipo e a forma das práticas sexuais como erradas e não como singularidades das experiências pessoais da dificuldade do uso da camisinha, confiança e o contexto em que se usa ou não a camisinha”, atestou Calazans.
Nos anos 2010 o panorama sócio-político e institucional girou em torno das políticas de saúde e AIDS, caracterização da epidemia, respostas sociais, estratégias e paradoxos transformadores. Já o cenário recente traz alguns tensionamentos sociais bem conflitantes, como:
– Luta por reconhecimento de sexualidades e expressões de gênero dissidentes
– Redução das políticas de AIDS
– Conservadorismo
2º Dia (27/06)
O segundo dia de apresentações do Seminário de Capacitação em HIV Aprimorando III teve pela manhã na Mesa 1 o tema do Sexo Seguro. Com moderação de Sílvia Aguião (Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos), os componentes do debate foram Thiago Pinheiro (psicólogo do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP), Victor Hugo Barreto (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Luís Vasconcelos (Universidade Federal da Bahia). Festas de sexo, barebacking e outras tipos de práticas e dissidências sexuais foram conceitos expostos e dialogados.
Já no período vespertino, a Mesa 2 focou na temática da Prevenção, Direitos Humanos e Redução de Danos. O primeiro palestrante foi Daniel de Souza (Redutor de Danos do CAPS Raul Seixas e idealizador da Rede Nacional do Consultório na Rua e de Rua). Sua fala centrou-se em evidenciar a experiência do trabalho e da realidade em se trabalhar com usuários de álcool e outras drogas e pessoas em situação de rua. “Nossa estratégia vai além da questão da saúde. Também foca em palestras e atividades dinâmicas (artes e pinturas), com o público alvo e com auxílio do pessoal da CAPS AD (Centro de Apoio Psicossocial) e assistentes sociais nas cenas de uso, como a linha de trem do Jacarezinho e na Avenida Brasil”, disse ele citando dois dos principais pontos de consumo de drogas na cidade carioca. E completou: “Porque a estratégia da redução de danos dos CAPS não pode ficar restrito a uma sala fechada com ar condicionado esperando paciente. Se eles não chegam até nós, nós levamos os consultórios até eles. Até porque há muitos casos de diagnósticos de HIV entre eles, inclusive em tratamento. Então o consultório na rua tem essa potência: de estar ali no território com eles”, finalizou.
ARDA
Associação de Redução de Danos do Amazonas. Isso é o que significa a sigla acima e foi a o mote de apresentação de Elvacilene Santos (coordenadora do Fórum de ONGs de IST/HIV/AIDS, Hepatites Virais e Tuberculose do Amazonas). Didática, porém objetiva, ela começou sua fala passando a limpo a classificação de diversos tipos de drogas existentes, suas funcionalidades no organismo e derivados como cocaína e crack, por exemplo.
“O usuário abusivo é o que precisa de redução de danos. Porque cada um de nós já usou algum tipo de droga, mas quando há taxas abusivas de substâncias pede-se atenção porque em muitos casos leva-se a overdose”, alertou. Mas as chamadas drogas lícitas como o álcool e o cigarro também impõe efeitos adversos para quem não tem limites. “O consumo de forma impulsiva e repetitiva traz a dependência. E na rua vemos muito isso. É importante estarmos ligados porque por qualquer motivo se bebe: por alegria, tristeza, dor, ansiedade etc.” atestou. Outro ponto importante abordado por ela foi a relação existente entre o uso de drogas (recreativas) e os antirretrovirais (ARVs). “Como qualquer pessoa, o soropositivo também pode e deve fazer uso de sua cerveja e outros tipos de drogas. Mas o abuso dessas substâncias pode acarretar sérios danos no fígado, já sobrecarregado pelos ARVs. O que realmente deve ser evitado é o cigarro. Ele é o pior entre todas (as drogas) para quem tem o HIV”, enfatizou.
Em seguida, Jorge Beloqui (conselheiro da ABIA e membro do GIV-SP) destrinchou com mais clareza as principais formas e estratégias adotadas para a redução de danos durante uma relação sexual, principalmente quando se objetiva o não uso da camisinha, quando se vive com HIV e/ou se vive uma relação sorodiferente. “É necessário um conhecimento que nem sempre está ao nosso alcance e do parceiro (a)”, afirmou. Encerrando, o conselheiro indagou acerca de questões contemporâneas que norteiam o assunto como o uso da terminologia do sexo seguro, as altas taxas de infecção ainda existentes no país e o fim do Departamento de IST/HIV/AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde.
3º Dia (28/06)
O terceiro e último dia do Aprimorando III teve como tema a Pedagogia da Prevenção. A abertura do evento ficou por conta de Juan Carlos Raxach, e um dos coordenadores do Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens da instituição. O foco de sua fala se deu através de uma dinâmica estratégica ilustrativa, intitulada ‘Rio da Vida’, que é um desdobramento do ‘Rio das Prevenções e que simboliza o percurso da vida de uma pessoa. “A partir da nossa experiência na ABIA vemos que para muitas pessoas a noção de sexo seguro está ligada a camisinha masculina (externa)”, disse ele.
Vivendo com HIV desde 1983, ele sabe de cor e salteado que o conhecimento acerca de outas novas tecnologias de prevenção e possibilidades torna-se importante para o indivíduo. Interativamente, Raxach apresentou uma ‘caixa de ferramentas’ com inúmeras práticas para se utilizar a partir dos pontos de vista médico, comportamental e estrutural. “Isso permite que cada pessoa curse o Rio de sua vida de maneira apropriada aos seus desejos, gostos e práticas sexuais. Uma forma de escolher livremente e construir sua forma de se proteger do HIV e da AIDS”, explicou.
Dentro desse curso do Rio das Prevenções vieram outros conceitos importantes como a Redução de danos (via práticas sexuais menos vulnerabilizadas como sexo sem penetração, o surgimento da camisinha masculina/externa e o Sexo mais Seguro), nos anos 80. A partir da próxima década, o Rio da Prevenção em sua apresentação evidenciou outras ferramentas no combate ao HIV e a AIDS, tal como a camisinha feminina (1993) e a Profilaxia pós-exposição (PEP), em 1996. “Mas é muito difícil ainda hoje você ter acesso a ela. Durante muito tempo ela foi direcionada somente para profissionais da saúde. Mas está disponível em inúmeras unidades pelos SUS”, contou ele.
Para apoiar o resgate do conceito de Sexo mais seguro, os recentes materiais lançados pela ABIA auxiliam no conhecimento sobre isso. Os Guias sobre sexo mais seguro, dividido em três módulos (HIV, IST e Hepatites Virais) “não foi dividido à toa. A proposta é poder trabalhar de forma em que os conteúdos não se misturem em um mesmo pacote. Além disso, esses materiais são ricos em fotografias”, citou o coordenador fazendo alusão às três subdivisões do módulo de HIV dirigidas às populações de HSH (Homens que fazem Sexo com outros Homens), Mulheres Cisgêneras e Mulheres Travestis e Transexuais. Ambos capitaneadas pelo Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens de Vagner de Almeida.
Em seguida, foi a vez da doutora em Ciências Sociais da UNICAMP Elisiane Pasini apresentar seu material. Com uma vida acadêmica dedicada às trabalhadoras sexuais cisgêneras (que se identificam com o sexo biológico que nasceram) ela trouxe importantes contribuições. “O preservativo feminino foi uma alternativa ao preservativo masculino para essas trabalhadoras. No âmbito da política de saúde representou uma vantagem adicional, ao reduzir a infecção das IST, do HIV, Hepatites Virais, gravidez indesejada e zika”, contou. Mas alguns desafios impedem uma correta adesão ao seu uso, segundo dados de suas pesquisas. São eles:
- Serviços de saúde não ofertam o preservativo feminino;
- O preservativo feminino é escondido nas unidades de saúde;
- Os preservativos femininos vencem nas Coordenadorias Estaduais e da capital;
- Falta de informação e conhecimento;
- Aspectos da ordem da cultura sexual, barreiras de gênero e sexualidade das mulheres.
Já a perspectiva juvenil ficou por conta do ativista da Rede de Jovens de Minas Gerais Rafael Sann. “Nós temos bastante jovens oriundos da internet, muitos com diagnóstico recente e que chegam com aquele pensamento estigmatizante sobre o HIV”, revela. Segundo ele, a Rede tem como objetivo debater, construir e dialogar acerca de: direitos sexuais, morte, adesão ao tratamento, diagnóstico, sexo, sexualidade etc. “A premissa é empoderar o jovem. Dar a eles conhecimento possibilidade de aprender outros olhares e viver sem o estigma de que ter HIV é morrer”, categorizou.
Todas as apresentações e o debate do terceiro e último dia tiveram a facilitação/moderação do Frei José Bernardi da Casa Fonte Colombo de Porto Alegre (RS).