Conhecer bem as palavras, seus significados, utilidade e aplicação são questões bem familiares para quem escolhe, principalmente, cursar Letras na universidade. Entretanto, fora do mundo acadêmico a depender de sua situação econômica, social, cultural, financeira, política, orientação sexual ou identidade de gênero elas podem não soar muito vindouras. Mas seja em que ambiente for, Vladimir Tavares – pelo menos até aqui – não tem muito do que reclamar.
Jovem, negro e homossexual ele revelou que desde o começo sempre tivera apoio de sua família. “(A relação) é maravilhosa. Simplesmente, eu recebi um abraço muito grande da minha família. E quando eu digo família eu não digo parente. Digo, minha mãe e meus irmãos. Nosso vínculo é muito amoroso”, diz ele. Mas, consciente, Tavares sabe que é uma exceção à regra. “Eu fico triste por ser privilegiado e ver tantos amigos expulsos e massacrados dentro de casa. Então dentro de casa eu sinto um conforto muito grande, porque eu sei que se eu sofrer algum tipo de violência na rua eu vou ter o amparo da minha família em casa”, afirma. E quando ele enfatiza que seu conceito de família é unicamente sua mãe e seus três irmãos (ele é o mais novo) é porque alguns atritos já ocorreram com demais membros e, por isso, prefere não dar atenção e confiança para os familiares.
Oriundo de uma família de base cristã-evangélica, o carioca conta que “na minha família – desde pequeno – eu tive uma tia que ela era lésbica. Então eles falavam assim ‘na nossa família tem tudo: tem corno, tem lésbica, menos gay’. Então a gente já cresce com aquele pensamento na nossa família de que não pode ter/ser gay. Aí acabou que quando eu contei pra minha mãe , os parentes eles já tinham aquela desconfiança e alguns julgavam muito. Inclusive um tio, (quando) eu e meu (antigo) namorado estávamos na casa (de) uma tia ele se retirou porque não queria ficar no mesmo espaço que a gente. E minha tia, vendo essa cena, ela super odiou, chamou a atenção dele e disse que não queria nenhum tipo de discriminação dentro da casa dela”. E completa: “Então eu falo que esse lance de família eu me espelho muito na minha mãe, porque se depender dos meus parentes é aquele ‘eu te amo, te aceito, mas…’. E como você vai aceitar e amar alguém se você não respeita aquela pessoa? Se já vem com um mas? Então você não me ama nem me aceita”, critica.
Religião e Sexualidade
Aliás, o antagonismo entre religião e sexualidade, por mais polivalente que pudesse ser, afetou em alguns aspectos a religiosidade – ou a maneira de praticá-la – de Vladimir. “Eu sempre gostei de ir à igreja. Ninguém me obrigava a ir. E eu assistia os cultos e ia pra casa. E eu comecei a perceber o quanto aquilo estava me fazendo mal – eu cresci na Assembléia de Deus e depois de um tempo eu fui parar na Sara Nossa Terra. Fiquei um ano lá. E teve uma vez que meu antigo pastor da Assembléia de Deus ele me chamou, foi fazer visita e disse assim ‘olha o que Deus tem pra te dizer – eu estava no meu último ano do ensino fundamental indo pro ensino médio – é o seguinte: que o diabo quer te colocar no laço e que quer fazer sua família passar vergonha porque daqui a pouco você vai estar vestindo roupa de mulher. E a gente não vai poder fazer nada”. E assim Jean, naquele dia eu só pensava em chorar”, relembra ele.
Isso alijou em sua mente a ideia perturbadora de que ou tinha algo errado ou que iria para o inferno. A dubiedade entre o sagrado e o profano de seu ser inquietava seus pensamentos e com isso as lágrimas eram suas única companhias. Entretanto, tudo mudou quando “eu comecei a perceber a minha sexualidade no ensino médio (e) estava na igreja. Eu já não estava aceitando algumas coisas que estavam sendo pregadas (tipo) ‘olha você vai pro inferno’, ‘olha você não vai fazer isso porque Deus criou homem e mulher’, ‘você não pode se deitar com outro homem’. E eu começava a chorar. Então eu saia da igreja e ia diretamente pra casa de uma grande amiga, que eu tenho até hoje, e só chorava. E aí eu comecei a perceber que estava me trazendo um desconforto, estava me trazendo uma angústia. E aí eu percebi ‘não, esse lugar não é mais pra mim. Eu acho que não sou mais bem vindo aqui’, atesta.
Hoje em dia, sua relação com Deus e a religião é direta. Sem a intersecção de um viés doutrinador. “Atualmente eu tenho uma outra visão do que é a igreja, do que é Deus. Então eu vou bem esporadicamente porque eu gosto de me espiritualizar, independente de religião”, explica.
Zona Oeste
A única coisa não esporádica em sua rotina de vida é o contexto de violência e desassistência de direitos básicos enfrentado enquanto carioca. Morador de uma comunidade em Realengo, Tavares lamenta não ter “acesso à cultura, teatro – há não ser agora que tem em Bangu. É muito difícil se deslocar de Realengo para o Centro da cidade onde tem um acervo maior de cultura. A gente sai, mas tem um horário certo. Vai e volta 22 horas ou 23 horas pra não poder sofrer algum atentado, alguma bala perdida. Vou dar um exemplo: uma vez eu estava indo pra academia e assim que eu desci e cheguei na academia começou um tiroteio. E foi, assim, uma coisa de segundos. Porque se eu demorasse minutos provavelmente eu estaria naquela linha de confronto. E eu não sei se estaria aqui ou se estaria no hospital. Então se torna um pouco difícil.
Para além disso, muitas das vezes nem o direito básico de estudar foi possível. “teve tempo que eu tive que perder duas ou três aulas de uma matéria que eu gosto muito, tipo Literatura Brasileira. Que começa 7 horas da manhã. Nesse período estava tendo um tipo de guerra, de tiroteio então eu não pude me deslocar por uns dois ou três dias. De certa forma acaba me afetando porque eu preciso estar na universidade, que é o meu lugar. Então, a partir do momento que eu sou impedido de estar nesse lugar, isso acaba me trazendo algum desconforto”, enfatiza.
UERJ
Inclusive, para ele, educação é primordial e um assunto caro de se falar. Esse lugar a qual o pertencimento ele tanto reivindica e faz seus olhos brilharem atende pelo nome de Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ou simplesmente, UERJ. Quando questionado sobre a importância de estar dentro de uma das mais representativas instituições, ele se emociona ao responder. “Eu fico até um pouco emocionado porque a UERJ me proporcionou muita coisa boa. Eu conheci a UERJ através de um amigo. E sempre teve aquela questão aluno da rede pública x aluno da rede particular. E aluno da rede particular quando vem de um ensino bom vai pra universidade pública e (aluno) quando vem do município ou do estadual vai pro particular. E eu queria quebrar isso e dizer ‘eu vim de um colégio municipal, de um colégio estadual e eu vou estudar numa universidade pública’.
Até que entre os idos de 2013 e 2014, durante o pré-vestibular na própria UERJ, ele aplicou exames para conseguir uma vaga na área de Humanas. O curso pretendido era Jornalismo. “Eu queria passar pra UERJ e queria tentar para outras universidades. E na primeira vez que eu tentei foi pra Jornalismo. ) e acabou que na UERJ como é um conceito de A, B, C e D eu fiquei com a nota C. Na verdade primeiro fiquei com E, depois com D e cheguei a C. E eu tentei ingressar com políticas de cotas por rede pública. Então eu consegui pra Letras porque é o forte da UERJ. E Jornalismo eu joguei pra outras universidades federais que são boas em Comunicação como a UFRJ. Então eu ingressei na UERJ pelo sistema de cotas”, ressalta. Porém, se no início tudo são flores pela novidade, quando a realidade é que se enxerga alguns entraves. Sobre isso, Tavares revela que a adaptação ao ensino superior público não foi nada fácil.
“Quando eu entrei no curso eu fiquei um pouco decepcionado porque quando você chega dentro da universidade, quem vem de um ensino defasado como o meu, a gente fica perdido. Não que eu seja uma criança, mas ‘olha querido isso aqui é a sua grade, são tantas matérias e isso aqui são suas salas e eu vou fazer um acompanhamento do semestre com você’. Então o que eu senti falta foi essa parte porque eu passei uma parte da minha graduação com uma ansiedade e chorando ao extremo. Atualmente eu não sinto mais, mas eu estava sendo muito cruel comigo mesmo. Na época eu trabalhava em telemarketing, então passaava seis horas e vinte dentro de um telemarketing – ia primeiro pra faculdade, de 07h00 à 12h20, depois ia pro telemarketing. Então eu já estava esgotado dessa carga do dia a dia. Ou seja, eu ficava de 07h00 da manhã à 12h20 na UERJ e, às vezes, eu saia correndo da aula porque tinha que pelo menos chegar num horário pra não sair tão tarde de Madureira. Então durante esse período da faculdade foi muito desgastante. E acabou que eu fiquei reprovado no primeiro semestre em Português e nisso minha ansiedade só aumentava. Mas eu sempre tive uma paixão muito grande, tanto por Letras como por Literatura brasileira e portuguesa”, justifica como balisa para sua resistência e resiliência.
Sobre a Literatura ainda, para ele, vai além de contos e poesias. Segundo Tavares, “Literatura é um ato político. E quando a gente chega na universidade a gente consegue perceber que a gente fala do jeito que a gente quiser. É óbvio que a gente vai respeitar o ambiente que a gente se encontra naquele momento. A gente costuma dizer que não há o certo ou o errado senão a gente cai num preconceito linguístico. Porque quando a pessoa não conhece a linguística, não conhece as variações, elas acabam praticando o próprio preconceito. (A UERJ) é uma universidade que eu defendo muito e é uma universidade que eu quero levar além da sala de aula, já que eu tô com um projeto de dar aulas para garis, pra quem vai fazer a prova da Comlurb. É uma forma de eu expandir o meu conhecimento pra fora da universidade para que as pessoas possam conhecer e dizer ‘nossa eu posso participar, eu posso entrar nessa universidade. Ali é meu lugar. Ali eu posso estar’. Eu acredito que o meu conhecimento não pode ficar só dentro da universidade, ele precisa se expandir”, sintetiza.
Sistema de Cotas Raciais
O que também precisa ser expandido, aperfeiçoado e preservado são as cotas raciais. Como um dos milhares de jovens beneficiados pelo sistema reparador – em que a UERJ, inclusive foi pioneira no Brasil quando tornou-se a primeira universidade a utilizar esse sistema como ingresso em sua graduação no ano de 2003 – Tavares reconhece a importância que no dia a dia isso simboliza para inúmeros jovens, sobretudo negros. “As cotas raciais elas são importantes. Tanto dentro da UERJ como dentro de outras universidades federais. Até porque enquanto um negro for perseguido dentro de um shopping, dentro de um mercado, dentro de uma loja precisa existir as cotas raciais. Até porque se a gente perceber as universidades elas são muito elitistas. A gente vê que há uma maior quantidade de pessoas brancas nas universidades, enquanto as pessoas negras são quase invisíveis dentro desses espaços que foram retiradas delas”, exaspera.
E complementa: “então pegando tanto a cota de rede pública como racial a gente pode ver que há uma balança aí. Então elas são importante porque, como eu falei, os negros nas universidades são poucos. Eu vejo isso pelo meu andar. Aliás, até que tem crescido o número de negros nas Letras, mas quando eu entrei na minha sala só tinha uma negra de pele escura (retinta). E porque não tem mais negros?”, questiona.
Ciente de que ser negro de pele clara (popularmente conhecido como pardo) lhe confere uma passabilidade – e privilégios – frente aos demais pares de pele escura (chamados de retintos) o estudante afirma nunca ter sofrido racismo, entretanto, “meus amigos que são negros retintos, eles acabam sofrendo esse preconceito muito maior do que eu. Eu nunca fui barrado, eu nunca fui perseguido dentro de uma loja, nunca fui abordado pela polícia. Por mais que eu more dentro de uma comunidade eu nunca fui abordado, sabe. Enquanto outros amigos e colegas já foram abordados, já foram acordados dentro do ônibus”, reconhece em tom de pesar.
Prevenção
Consciente e atualizado, Tavares destaca que a prevenção é fundamental nas relações. “Tem aquele ditado que diz que quem vê cara não vê coração. Então, é muito importante (a prevenção) até porque quando você conhece uma pessoa, você não sabe quem foram as pessoas que essa pessoa que você tá ficando já ficou. Então é sempre importante ter sempre em mente, ou dentro da nossa bolsa, a camisinha”, alerta.
Até porque ele sabe o quanto questões relacionadas às infecções sexualmente transmissíveis e/ou HIV/AIDS estigmatizam os indivíduos. Uma de suas lembranças mais marcantes sobre isso foi quando deparou-se com uma edição do extinto programa A Liga da Bandeirantes onde “eles colocaram um grupo de pessoas – uma arquiteta, uma gay, uma travesti – para as pessoas que estão passando (e perguntando) quem é que tem HIV. E todo mundo foi na lésbica, todo mundo foi na travesti, todo mundo foi no gay e ninguém ia na arquiteta. E no final quem tinha o HIV era a arquiteta porque o marido dela transava com ela sem camisinha e ele transava com outras pessoas sem camisinha e acabou transmitindo o vírus para a arquiteta. Então a gente vê o preconceito das pessoas também com as minorias”, afirma.
Infecções entre Jovens
Apesar de tantas novas tecnologias, informação e divulgação o jovem lamenta que muitos dos índices de HIV ainda hoje registrados seja na população mais jovem. Perguntado sobre que motivos levariam a isso, ele acredita que “tem pessoas que tem consciência do que aquilo vai trazer, mas mesmo assim acaba fazendo (sem camisinha). A pessoa tá na balada, tá bêbada, tá beijando e tá com fogo naquele momento, tá sem camisinha e inconsciente acaba transando mesmo sabendo que pode ser transmitido qualquer tipo de DST naquele momento. Os aplicativos, atualmente, eles são bons mas acabam também influenciando. Porque se não me engano nesses aplicativos tem informativos de se prevenir. De você utilizar (PEP e PrEP). E é muito importante porque tem pessoas que acabam utilizando o PrEP e a PEP pra poder transar, (mas) se não me engano, esses dois que acabei de falar eles bloqueiam o vírus do HIV, mas não as doenças sexualmente transmissíveis”, ensina.
Importância do Projeto
Diante desse cenário é que se visibiliza a importância do Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e do Grupo Arco-Íris, por exemplo, segundo o carioca. “Eu conheci o (Grupo) Arco Íris, aliás, eu já tinha ouvido falar mas de conhecer foi esse ano, assim como a ABIA. E o primeiro contato que eu tive no Arco Íris foi pra fazer um curso sobre HIV. E eu vi o quanto havia de gays, travestis, lésbicas e o quanto esses núcleos são importantes pra conscientizar. É como se vocês fossem, como eu posso dizer, multiplicadores. Vocês vão pegar as informações que vocês tem, vocês vão passar pra essas pessoas, que muitas vezes não tem – como era o meu caso – e acabam transmitindo esse conhecimento (para outros)”, elogia.
Outro ponto destacado por ele, foi que além do acesso á informação e capacitação que esses espaços transmitem, sobretudo é uma oportunidade ainda de descontruir velhos conceitos. “E eu acabo tirando também esse preconceito que eu tinha lá atrás. Você pega essa conscientização do que esses grupos implantaram em você e você acaba transmitindo para outras pessoas. Então são importantes pra gente crescer como pessoas e seres humanos. E quando vem vocês, tanto a ABIA como o Arco Íris, criando esses projetos a gente sai dessa bolha. A gente acaba expandindo nosso conhecimento porque, aliás, a gente já tem uma bagagem de conhecimento e vocês só vão agregar na nossa vida pra gente aplicar lá fora”, pontua.
Futuro
Apesar de não planejar o futuro, a assertividade de suas palavras deixa bem claro o que ele almeja para seu futuro. “Eu nunca descarto o futuro. Mas eu tô vivendo o presente. O meu presente agora é só me formar. Eu quero me formar e expandir esse meu conhecimento e, como eu havia falado, poder transmitir o meu conhecimento para que outras pessoas possam multiplicar esse meu conhecimento. Que outras pessoas possam conhecer. Então no meu atual momento é me formar, entrar se Deus quiser numa escola municipal ou escola estadual”, diz ele.
Mas provocado, ele acaba revelando seus planos próximos. “(Quero) criar uma semana literária Conceição Evaristo, que é uma escritora que nós temos e ela é importantíssima, levar esse conhecimento pra esses alunos nessa semana literária e, levar a Literatura pra que ela não seja vista somente como obras e anos e conceitos”.
Texto: Jean Pierry Oliveira