RIO – Um dia depois de apoiar emendas que restringiam direitos sexuais e das mulheres sugeridas por Arábia Saudita, Iraque e Paquistão no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil votou nesta sexta-feira a favor da renovação, por três anos, do mandato do “perito independente sobre proteção contra violência e discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero ”. Apesar disso, após a votação o país fez a ressalva de que o governo Bolsonaro “considera gênero sinônimo de sexo biológico”.
Ao lado de mais de 50 países, o Brasil foi um dos proponentes da renovação do mandato do especialista, que tem a missão de atuar globalmente contra a violência “baseada na orientação sexual e na identidade de gênero” e de abordar suas causas.
Após votar a favor do mandato, ao lado de 22 países — houve 18 votos negativos e seis abstenções —, a embaixadora do Brasil em Genebra, Maria Nazareth Farani Azevêdo, protestou contra a redação do texto, afirmando que o país “não está satisfeito com a linguagem empregada”. O governo brasileiro, disse, considera que os termos gênero e sexo biológico são sinônimos.
— Não estamos satisfeitos com a linguagem empregada em várias resoluções no atual item da agenda, pois algumas expressões carecem de uma definição clara nos textos — afirmou Azevêdo. — O Brasil considera que o termo “gênero” é sinônimo de “sexo”, que deve ser entendido como a definição biológica de feminino e masculino.
A embaixadora criticou o uso da expressão “serviços de atenção sexual e reprodutiva”, que, segundo ela, “tornou-se associada a políticas pró-aborto”. Ela disse que o “governo brasileiro defende o direito à vida desde a concepção e condena a prática do aborto como método contraceptivo”. Após dizer que o “governo brasileiro implementa políticas de saúde sexual e reprodutiva integral”, a embaixadora acrescentou que o país “reitera nossa determinação em combater a violência e a discriminação contra pessoas LGBT”.
Espanto em aliados
Até ontem, quando terminou a atual sessão do Conselho de Direitos Humanos, o governo evitara afirmar o compromisso brasileiro de combater a violência contra pessoas LGBT — o discurso da embaixadora não incluiu na sigla a letra “I”, referente a intersexo. Nos dias anteriores, o Brasil provocara espanto em aliados tradicionais e países ocidentais, ao protestar contra o uso do termo gênero em resoluções internacionais. A posição brasileira foi distante das dos demais países latino-americanos e dos europeus, e levou o México a retrucar que o termo é consagrado há décadas no direito internacional, estando presente em mais de 200 resoluções da ONU.
O governo Bolsonaro excluiu o termo gênero da candidatura brasileira à reeleição no conselho, em eleições marcadas para outubro. Além disso, o Brasil votou a favor de chamadas “emendas hostis”, para enfraquecer resoluções sobre direitos sexuais e das mulheres, votando ao lado de países autoritários do Oriente Médio e contra quase todo o Ocidente.
Ontem, o país mais uma vez votou a favor de uma emenda proposta pelo Egito, uma ditadura militar, para excluir menção “ao direito à saúde sexual e reprodutiva”, sendo, assim como em todas as emendas da véspera, derrotado.
Observadores entendem que a posição do Brasil deixou de ser confiável para seus tradicionais aliados, sobretudo latino-americanos, que veem o país se aproximar de Estados considerados párias, que buscam a vaga no órgão para encobrir violações. Na quinta-feira, o país se absteve de votar contra a política de execuções extrajudiciais e sumárias de Rodrigo Duterte nas Filipinas.
A menção explícita a populações LGBT no discurso ontem e o apoio brasileiro à renovação do mandato do perito provavelmente têm o objetivo de atenuar essa imagem. O país estaria evitando se desgastar demais com latino-americanos e europeus, de cujos votos precisará para continuar com uma cadeira no organismo de 47 membros. Ao mesmo tempo, a nova posição brasileira, reforçada pelo discurso da embaixadora, pode atrair o apoio de países conservadores.
Segundo Sonia Corrêa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, que acompanha as posições internacionais brasileiras na questão, o discurso da embaixadora foi incompatível com o mandato apoiado pelo país:
— O mandato comporta todas as situações de violação e discriminação por identidade de gênero, ou seja, uma identidade construída, que é diferente do sexo biológico — disse Corrêa, que definiu a posição brasileira como “esdrúxula”. — Grande parte das pessoas que o perito visa proteger não se inscreve na descrição da embaixadora.
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), que reúnem ativistas pelos direitos de travestis, transexuais e pessoas LGBTI, publicaram notas nas quais criticam os posicionamentos brasileiros na ONU e denunciam retrocessos e a falta de políticas públicas com o objetivo de inclusão de pessoas trans neste governo.
Fonte: O Globo