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O jogo das autorias (Ou sobre como precisamos falar de sorofobia)


Jovem estudante que vive com o HIV há sete anos, vítima de sorofobia, relata a experiência dolorosa através de um registro poético e ao mesmo tempo confessional sobre a prática e como isso o impactou. 

“Não se engane. O medo de todos os soropositivos é a sociedade. Para alguns, o medo do vírus pode até ser maior, mas nós temos aparato medicinal seguro para lidar com ele. Apesar de ainda não ser um direito universal, como sabemos, o tratamento existe. Ele é rápido, eficiente e permanente. Nosso único dilema é tomar nossos comprimidos, suplementando nosso corpo de vida e saúde. Sim, nós somos corpos saudáveis. Nós existimos, resistimos, sobrevivemos e vivemos. Por isso, nosso maior medo é a sociedade. Pois contra ela, não existe antídoto. Não temos controle sobre ela, não conseguimos mesurar, dimensionar e ponderá-la. A sociedade é o que ela pode e quer ser. A sociedade é espaço de muito, de todos, de todos contra alguns, de alguns contra todos. E justamente por isso, a sociedade é também lugar dos maliciosos. Dos vis, dos inconsequentes, dos ardilosos e principalmente, dos criminosos. A sociedade não está preparada para lidar com a nossa estrutura de violência diária. Contra a sociedade, nós resistimos. Todos os dias, nós persistimos em querer viver. Nós nutrimos nossas querências e disputamos nosso lugar de felicidade, mesmo que nosso lugar de fala seja sempre e constantemente encerrado, evitado e indisponível. Nós, portanto, na maioria das vezes, nos calamos. Ou melhor dizendo, somos calados. E vivemos, desta forma, enfrentando quimeras e leões, dilemas e duelos, com o simples desejo de ser e de ter. Ter uma sociedade mais justa, mais inclusiva, mais observadora. Que observe os nossos, os deles, os teus. Que nos acompanhe também, que estenda suas mãos e diga: nós estamos também com vocês.
Mas mesmo assim, as vezes, nós perdemos. Perdemos com nossas vidas, com nossas dores, nossos silenciamentos, nossas impermanências. Quantos de nossos não ficaram para o almoço de domingo? Quanto de nós não ficaram para viver seus sonhos, para se encher de amor e deixar amor aos outros? Quantos de nós deveriam estar aqui e não estão mais? Você com certeza já ouviu uma das nossas tristes histórias. Um vizinho que não chegou mais, um aluno que deixou de ir para aula, uma amiga que morreu de qualquer doença não revelada. Nós morremos e mesmo nas nossas mortes, vocês não querem saber quem somos. Nossa dignidade só existe quando há silêncio. Mesmo quando nosso silêncio é sepulcral. Vocês não querem falar sobre nós. Mas nós continuaremos falando. Permanecer é te constranger. Permanecer é reivindicar nossos corpos, nossas vidas, nossos afetos. Vamos continuar ficando porque aqui também é nosso lugar.
Escrevo este texto porque, infelizmente, fui vítima de sorofobia. Não que eu já não fosse, afinal, meu silêncio forçado é violência, meu silenciamento é dor. Mas dessa vez, a sociedade foi longe demais. Me abordaram, anonimamente, e me ameaçaram. Ameaçaram saber do meu “segredinho”. Ameaçaram me expor. Mas não fizeram apenas isso. Atentaram contra minha integridade, contra minha saúde mental. Quiseram-me morto. De forma anônima, quiseram que eu sucumbisse. Mas não, não vou dar-te este prazer. Pois sou resistência. Sou o seu melhor incômodo. De forma cruel e ardilosa, invadiram meu espaço, meu lugar, em um desses aplicativos frouxos, irresponsáveis, e tentaram tirar de mim mais medo e mais dor. Mas estavam errados. Não sou vergonha, não sou medo, tampouco desprezo. O que se deu depois foi uma sucessão de outros erros, outros crimes. A sociedade nunca erra uma única vez. A corrente do mal se revela. Afinal, nós, soropositivos, não podemos ir longe demais. Mas dessa vez, eu escolhi ir.
Não, você não vai vir até mim e me ameaçar. Não, eu não vou deixar que a delegacia diga que isso não é crime. Não, eu não vou fingir que o mundo é isso e que está tudo bem. Não, eu não vou manter a minha paz. Vocês levaram ela de mim. Despertaram em mim uma fera destemida, que não cabe em si mesmo. Uma fera que vai incomodar mais do que devia. Despertaram uma fera pública.
A sua autoria é importante. Mas eu sei qual é a sua cara. Sua cara é a cara da sociedade. Você está em todos os lugares, em todas as curvas, em todos os ambientes de trabalho, em todas as escolas. Você está almoçando comigo todos os dias. Você está sentada ao meu lado dentro do ônibus. Você discute política comigo. Você não tem nome. Mas teu nome são vários. Eu posso não saber quem você é, mas eu sei o que você é. Você é sorofobia.
O veneno não está em mim. Nunca esteve. Mas eu sou tóxico. Sou tóxico contra esse genocídeo da comunidade soropositva. Sou toxico contra quem não revela a sua cara criminosa. E dessa vez, escolhi não ser mais silêncio. Você pode me fazer chorar, pode me fazer questionar meu lugar nesse mundo, pode até me matar. Mas você não pode tirar de mim minha força. Eu sou potência. Eu também estou em todos os lugares. Eu também estou com você no seu almoço de domingo. Não vamos retroceder. Chegamos até aqui a base de muita morte. Chegamos até aqui porque queremos viver. E sua tentativa de me constranger vai se voltar contra você. A vergonha é só sua. O crime é teu. E eu vou permanecer. Vou gritar, escoar, transbordar. Vou incomodar, vou te trazer barulho. Nós somos e vamos continuar sendo intenção de vida, impulso de amor.
Não estamos potencialmente morrendo e não vamos deixar esse silêncio durar por muito tempo. Vocês podem achar que estão ganhando, mas vão perder. Esse é apenas o começo de uma nova história. Nós vamos disputar nosso direito de saúde. Nosso direito de cuidado. Nosso direito de afeto. Nosso direito de amor e de amparo. Nós vamos disputar nosso direito de dignidade, de autonomia. Nós vamos disputar nossa sede de crescimento pessoal e social, nós vamos reivindicar nossa identidade. Nesse jogo de autoria, nós nos protegemos. Amigos nos seguram. Família nos apoia. Nós não estamos mais sozinhos. Nós somos soropositivos e soronegativos. Nós podemos ser menos pessoas que vocês, mas nós somos maiores. E vamos ser ainda mais.
O aplicativo vai ter que ceder seus dados. Mesmo isso não sendo talvez o mais importante. Não se engane: se a justiça está despreparada, ela vai mudar. Talvez agora, ou amanhã. Mas ela vai mudar. Mas isso não se trata mais de você. Tampouco de você, sociedade. Isso se trata de nós, de nossas redes de segurança, de nossas esperanças. Nós somos os protagonistas dessa história.
Não vamos mais deixar que os nossos morram. Não vamos mais deixar que os nossos sejam perseguidos. Não vamos mais deixar que sejamos desatendidos e desprezados. Vamos responder. É hora de que a luta contra a sorofobia entre na sua bolha, na sua casa, no seu trabalho. É hora de lutarmos contra esse esconderijo social que nos acorrentam. Nós vamos quebrar esse teto frágil. Somos poder, força e foco. A estrutura vai ceder.
Quero terminar este texto para você, soropotivo. Querido ou querida, você não está sozinha. Escolha teu melhor momento para construir sua rede de afeto. Mas saiba, ela existe. Ela está pronta para te receber. Protegeremos sua identidade até onde você queira. Serás apoiado também se decidir vir a público. Nós vamos vencer a sociedade. Afinal, todos os dias ela perde mais um pouco.
Siga sendo resistência. Siga sendo coragem. Siga sendo amor. Nós estamos com você.
Nesse jogo de autoria, nós seremos verdade. É hora de falarmos de sorofobia. Sorofobia mata. Não deixe que os seus morram. Sociedade, nós estamos te observando.
Continuemos na luta.”

Assinado,
Anônimo público

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