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Delegado de polícia, gay e ativista LGBTI: uma tripla resistência no Brasil


Desde o primeiro momento em que começa a falar sobre sua luta em favor da comunidade LGBTI, o celular do delegado de polícia Mário Leony não para de tocar. Entre uma ligação de uma amiga, de um conhecido e de um colega de trabalho, de repente aparece uma mensagem que o faz interromper a conversa. Sua expressão facial denota preocupação. “Um transexual precisa de ajuda. Seu companheiro foi preso”, comenta com um olhar no vazio, como se estivesse procurando uma rápida solução para o que aconteceu.

Em seguida retoma a conversa com a tranquilidade típica do profissional acostumado a resolver os problemas alheios e presenciar todos os dias a violência em sua forma mais cruel, gratuita e sangrenta. Como qualquer outro delegado de polícia no Brasil, sua principal tarefa consiste em cuidar de pessoas vítimas de estupros, roubos, furtos e assassinatos. Trabalha em Aracaju, uma cidade em expansão, capital de Sergipe. Com população estimada em mais de 2,2 milhões de habitantes em 2019, o menor Estado da República Federativa do Brasil se tornou um dos mais violentos do país, de acordo com o Fórum de Segurança, uma ONG dedicada à pesquisa sobre segurança pública.

Nos últimos dois meses, a tensão aumentou em todo o país. O rápido crescimento dos infectados e mortos pela covid-19 deixou muitas pessoas na comunidade LGBTI ainda mais vulneráveis. “Estamos muito alarmados com tudo o que está acontecendo. Apesar da situação de confinamento parcial, conseguimos reunir algumas pessoas e associações para levar ajuda material e psicológica, principalmente para os travestis que exercem a prostituição”, explica Leony, demonstrando preocupação com a rápida disseminação do vírus.

Além de realizar seu trabalho diário, Leony milita no PSOL, partido político pelo qual se candidatou a deputado federal em 2018, atende seu marido e seus inseparáveis animais de estimação. Mas, acima de tudo, dedica mais da metade de seu tempo a defender os direitos da comunidade LGBTI, solucionar crimes, apoiar associações e até proteger parentes de vítimas de homofobia e transfobia.

Ser gay e membro da corporação da polícia ainda implica uma contradição neste país. Para boa parte dos brasileiros, um policial tem que ser heterossexual, linha dura e, sempre que a ocasião requerer, agir com um toque de violência. Esses estereótipos, bastante enraizados na sociedade, estão sendo rompidos pouco a pouco por iniciativas individuais e coletivas.

“O ano de 2007 representou para mim uma libertação de tudo o que me aprisionava e, ao mesmo tempo, o início de uma fase de empoderamento que me permitiu ser o que sou e melhorar minha relação com o mundo”, diz Leony, recordando o dia em que se declarou publicamente gay durante um seminário sobre segurança pública para LGBTI no Rio de Janeiro. “Nesse evento, repleto de delegados, oficiais, diretores de academias de polícia, investigadores e líderes de movimentos sociais, tive que apresentar o resultado da minha pesquisa. De repente, entrei em um beco sem saída. Não me dei conta das consequências das minhas palavras, mas elas se mostraram frutíferas”, declara, com orgulho.

A partir daí, sua colaboração com movimentos sociais se tornou uma espécie de recompensa pessoal. Junto com outros colegas, fundou a Renosp, uma rede nacional de operadores de segurança pública LGBTI, composta principalmente por membros de várias forças de segurança.

Na última década, membros da sociedade civil e instituições levantaram a voz para dar visibilidade e garantir os direitos de uma comunidade que ainda sofre as consequências de atitudes discriminatórias, até mesmo do Poder Público. O Anjos Azuis é outro exemplo. Em 2011, sete guardas municipais formaram esse grupo dedicado ao trabalho de sensibilização para combater a discriminação e a violência sexual em instituições penitenciárias e escolas. Utilizando recursos como jogos, conferências e, principalmente, o teatro, conseguiu transmitir sua mensagem a milhares de meninos, meninas, adolescentes e jovens da cidade.

Na luta contra a discriminação, a prevenção do suicídio e os assassinatos da comunidade LGBTI, o Poder Público tem sido um dos grandes ausentes, principalmente com a chegada do Governo de Jair Bolsonaro.

“O Executivo é o maior responsável pelo fomento das políticas para evitar as barbáries que estão ocorrendo quase diariamente no país”, diz Leony. “Estamos em uma época de banalização da vida e de intolerância. A ascensão ao poder de um Governo totalitário, racista, xenófobo e que incita os cidadãos à violência representa um retrocesso em relação a tudo o que alcançamos nas últimas duas décadas. Apesar de ser delegado, eu também senti na pele o peso da discriminação”, acrescenta.

A imagem do Brasil projetada no exterior durante séculos, a de um paraíso tropical, um país feliz, aberto, com liberdades garantidas e uma mistura racial que favorecia a integração, é muito diferente da realidade. “Nos casos específicos de discriminação e violência contra a comunidade LGBTI, está demonstrado que os que mais sofrem são negros e moradores de favelas. Nessas áreas, quando a polícia faz suas temidas batidas, elas costumam ser bastante seletivas”, diz Izadora Brito, advogada, ativista e defensora dos direitos humanos. Ser ativista no Brasil também significa correr riscos constantes de execução.

Avanços e retrocessos

É evidente que para muitos brasileiros 2019 representou uma fase de transição entre liberdade e supressão de direitos. Desde o início da campanha eleitoral, o atual Governo já dava sinais de que seria um divisor de águas. Com o apoio dos setores mais conservadores da política, do Judiciário, de dezenas de igrejas evangélicas e dos nostálgicos da ditadura militar, Bolsonaro utilizou a homofobia como recurso fácil para conquistar milhões de votantes e fragmentar ainda mais a sociedade. E conseguiu.

O Brasil é um dos países com o maior número de crimes contra homossexuais. Segundo o Grupo Gay da Bahia, uma das ONGs mais antigas, em 2019 foram assassinadas 329 pessoas dessa comunidade em todo o país.

Uma delas foi a vereadora carioca Marielle Franco. Negra, lésbica, feminista e ativista, foi brutalmente assassinada com vários tiros em plena rua em março de 2018. “Sua morte é mais uma prova da violação e da deterioração dos direitos humanos, que estão ocorrendo de maneira aterradora neste país. Não podemos esquecer que muitos brasileiros estão sendo forçados a emigrar por não encontrar segurança e perspectiva no país”, alerta Mário Leony. Seu colega de partido, Jean Wyllys, jornalista, referência gay e ex-deputado federal, teve de renunciar à sua cadeira no Congresso e se asilar no exterior devido às ameaças de morte que estava sofrendo. Atualmente, dedica-se à docência.

O Supremo Tribunal Federal decidiu no ano passado que os atos de homofobia e transfobia serão considerados crimes, equiparados aos de racismo. Também se conseguiu, pela via judicial, a legalização do casamento homossexual. Uma resolução de Conselho Nacional de Justiça obriga os funcionários dos cartórios a casar pessoas do mesmo sexo.

A resistência como arma de sobrevivência

Pertencer à comunidade LGBTI no Brasil pode significar viver à margem da sociedade e em constante estado de vulnerabilidade. Em Aracaju, assim como em muitas outras cidades do país, o número de pessoas LGBTI expulsas de casa por seus próprios familiares aumentou. “Quando o poder público falha, precisamos agir com os recursos que temos. O fato de garantir a saúde mental e evitar suicídios já é algo muito significativo”, destaca Leony. Sua equipe presta assistência social e psicológica a mais de 50 pessoas LGBTI que vivem no quilombo Beatriz Nascimento.

Sua participação foi essencial para esclarecer o assassinato da cabeleireira transexual Denise Rocha Melo, de 53 anos, ocorrido em junho de 2017 em Aracaju. “Eu poderia passar horas falando dos casos de violência, mas temo não ter tempo suficiente para isso”, diz ele enquanto verifica as mensagens que chegam ao celular, talvez de alguém que precise de sua ajuda. Em 2012, Leony foi homenageado por seu trabalho em favor da comunidade LGBTI e dos direitos humanos.

“Resistir e resistir. Nossa luta não para por aqui. Não podemos baixar a guarda. Daqui em diante, essa palavra deve ser incorporada à nossa luta diária”, afirma o incansável delegado.

Fonte: El País Brasil

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