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Como o sistema de saúde brasileiro, baseado em modelo binário, afasta e prejudica as pessoas trans


Foto: Arquivo

Sam é um homem trans de 32 anos que precisou ser atendido de emergência em uma unidade de saúde porque sofria de fortes dores abdominais há oito horas. Na triagem hospitalar, os enfermeiros detectaram que ele estava com a pressão sanguínea elevada e que ficava confortável entre os episódios de dor.

Sam informou à equipe de saúde que era um homem trans . Seu histórico médico indicava que ele era homem. O uso da testosterona e dos remédios para pressão precisou ser interrompido porque Sam perdeu o plano de saúde. Sua última menstruação tinha sido há anos.

Ao final da triagem, Sam deu entrada no hospital como um homem obeso, com dores abdominais e que não fazia uso dos medicamentos necessários para controlar a sua pressão, fez uma bateria de exames laboratoriais, entre eles o Beta HCG (exame de gravidez), solicitado de forma aleatória.

Horas depois, uma enfermeira identificou o resultado positivo paragravidez , levando os médicos a considerarem a hipótese de uma gravidez. Pela primeira vez, seu abdômen foi examinado. Uma ultrassonografia confirmou a gravidez. Sam já estava com dilatação e apresentando complicações sérias. Horas depois, deu à luz uma criança natimorta.

O caso acima foi publicado pelo “The New England Journal of Medicine”, um dos mais importantes periódicos médicos dos Estados Unidos. Sam não é brasileiro, mas histórias como a sua acontecem diariamente no País, quase sempre por causa da desinformação presente no sistema de saúde, treinado para funcionar de forma binária, sem pensar nas particularidades dos corpos de pessoas trans .

Para Bárbara Meneses, psicóloga e sexologa do Centro Referência LGBTde Campinas — o primeiro no Brasil voltado para o atendimento de pessoas LGBT —, a estrutura binária que sustenta o atendimento médico no País não está ligada apenas a um condicionamento inconsciente. Trata-se também de um caso forte de desinformação, que atinge questões básicas, como o que é ser uma pessoa trans.

— O sistema de saúde é muito precário. Os profissionais não sabem lidar com essas questões, não sabem lidar com essas particularidades e especificidades. E isso está muito ligado ao preconceito. É cada vez mais comum você unir religião com profissão. Quando há um embate, você fecha  os olhos para essas questões porque, se olhar para o atendimento de pessoas trans, terá que lidar com tudo o que envolve essas pessoas.

O despreparo do sistema de saúde brasileiro para acolhimento e atendimento fez com que pessoas trans se afastassem do sistema público de saúde, o que provoca um distanciamento ainda maior das equipes de saúde dessas particularidades. A partir daí, surgiram as clínicas voltadas para atendimentos de pessoas trans, que oferecem um atendimento humanizado e preparado.

No entanto, mesmo sendo a melhor solução para a atual conjuntura, as clínicas não deixam de ser uma espécie de segregação das pessoas trans, que deveriam receber o mesmo atendimento que as outras no sistema de saúde, como explica Bárbara:

— Eu brinco que não tem sinusite trans e cis. Esse atendimento e acolhimento que são oferecidos pelas clínicas voltadas para pessoas trans deveria fazer parte do sistema de saúde. Mas, na atual circunstância, não há outro caminho — comenta Bárbara.

Como funciona o sistema de cadastro

O problema para o atendimento das pessoas trans vai além do despreparo dos profissionais de saúde e começa já no sistema que realiza o cadastro.

Ao dar entrada em uma unidade hospitalar, o paciente deve preencher um formulário, onde informa nome (de registro e social) e gênero, que, no caso de pessoas trans, acompanhará o nome social. Posteriormente, esse cadastro será usado para a liberação de exames. No entanto, a autorização pelo plano de saúde ou pela rede pública de certos exames depende do gênero informado no cadastro. É como um pré-requisito. Se não houver conformidade, o pedido para a realização de determinados exames é bloqueado automaticamente.

— Para uma mulher trans acima de 50 anos é preciso que o médico peça exame de próstata. Mas, se o cadastro dela estiver como gênero feminino, o sistema bloqueia, porque é um exame para homens. Se um homem trans precisa realizar ultrassonografia no útero ou exames de mama, mas identifica o seu gênero como masculino no cadastro, esses exames podem ser negados pelo sistema ou o acesso a eles pode ser dificultado — ressalta Nícolas Camara, médico e homem trans. — O corpo humano não é um só. Está tudo errado. Temos leis, decretos e direitos, mas, na prática, continuamos sofrendo discriminação e ninguém faz nenhum esforço para mudar. Apenas colocam um campo para nome social.

Nícolas ainda comenta a contradição entre o sistema binário de atendimento de saúde e o significado da palavra “trans”.

— Originalmente, transição é transitar, sair de um estado para o outro. Não quer dizer que você vai definitivamente chegar em um outro estado específico. Só significa que saiu daquele lugar inicial. Então nem todo mundo vai fazer essa transição binária.

Procurado pela reportagem de Celina para comentar o serviço de saúde pública para pessoas trans, o Ministério da Saúde enviou a nota abaixo:

“O Ministério da Saúde esclarece que busca ampliar e qualificar o atendimento à toda população com equidade. A nova estrutura do Ministério da Saúde, publicada em junho, promove maior integração entre as áreas da pasta.

A reformulação busca implementar ações mais efetivas, eficientes e contemporâneas e está sendo realizada de forma a priorizar ações de assistência à saúde por meio das melhores evidências científicas, sempre visando tornar mais eficaz o gasto público.

Um dos objetivos é trabalhar com as doenças mais comuns nas populações com maior vulnerabilidade e com os mesmos condicionantes sociais para multiplicar experiências bem-sucedidas.

Ainda, está sendo priorizado o acesso a atenção básica, capaz de resolver mais de 80% dos agravos de saúde da população. Com uma assistência mais próxima e, agora, com a possibilidade de ter postos de saúde abertos até mais tarde, será possível melhorar o acesso dos diferentes públicos ao Sistema Único de Saúde e dar uma resposta local às necessidades de cada população.”

Fonte: O Globo

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