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Com rotina piorada por coronavírus, trans de SP habitam malocas e ‘casa de vidro’ imaginária


Ariadna Bruneli Lima de Oliveira, 23, e Lucas de Souza Oliveira, 23, e Duda (ao fundo) na Casa de Vidro do Minhocão, em SP Karime Xavier/Folhapress

Ariadna de Oliveira, 23, pensa em Deus toda vez que escuta a palavra coronavírus. “Ele não vai deixar essa doença chegar aqui”, diz.

Sob a pista do elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, Ariadna encontrou um lugar no centro da capital paulista onde vivem mulheres trans como ela.

O local é conhecido como a “casa de vidro” do Minhocão. O apelido faz referência à casa do Big Brother Brasil, pela sensação que as moradoras têm de serem observadas o tempo todo.

No chão sujo, a cearense amontoa pedaços de madeira usados para o preparo da comida. Dorme no seu colchão ao lado das amigas, sobre uma estrutura por onde se dissipam os ventos dos trens que circulam no subterrâneo da metrópole.

É, por isso, que a casa imaginária também carrega outro nome: maloca da Marechal, por causa da presença da estação do Metrô, da linha 3-vermelha.

Ariadna e o amigo Lucas, um dos poucos gays que moram no local, agradecem a vizinhança pelas máscaras de pano e pelos frascos de álcool em gel que ganharam nos últimos dias. “É a solidariedade desse povo que está mantendo a gente viva, com comida para todas refeições do dia”, conta Ariadna.

Nessa casa sem CEP, as meninas também sabem devolver o cuidado que recebem. Elas mantêm um cantinho da doação, com calçados, roupas e até comida que são distribuídos aos mais necessitados.

As moradoras da maloca têm um histórico de abandono familiar, vício em drogas e trabalho na prostituição.

Nascida em Fortaleza (CE), Ariadna deixou a casa da mãe para ganhar a vida em programas sexuais na cidade de São Paulo. Por sete meses, conciliou a “pista” com a fome e a violência nas ruas. Largou tudo e conseguiu uma vaga na maloca há dez dias.

“A luta, aqui, é por banheiro”, diz ela. A falta de um espaço de banho é ainda mais urgente devido à disseminação do novo coronavírus, mas também para a recuperação de Maria Eduarda Visconde, 35, outra moradora trans da maloca.

Duda, como é conhecida, está com tuberculose e muito debilitada —passa o dia deitada. Uma pilastra do elevado mais próxima da “casa de vidro” é o banheiro de Duda.

Uma vez ao dia, as amigas retiram Duda do colchão, fazem um cercadinho de cobertas junto à pilastra e dão banho de caneca na sem-teto, que diz ter nascido em Presidente Prudente (SP) e mora nas ruas há muitos anos.

De poucas palavras, Duda afirma não ter sentido fome ultimamente, mas que “precisa se alimentar mais para sair logo dessa”. Até o ano passado, as trans da Marechal precisavam apenas atravessar uma rua para acessar o banheiro da estação do metrô. Mas o espaço foi interditado.

Também contavam com os banheiros do Castelinho da rua Apa, prédio histórico gerido pela ONG Clube de Mães do Brasil, que foram fechados temporariamente, conta Maria Eulina Hilsenbeck, fundadora da entidade e ex-moradora de rua.

“A gente conseguia fornecer, em média, uns 80 banhos ao dia. Mas tive que fechar os banheiros porque todos os nossos monitores voluntários estão no grupo de risco da Covid-19”, diz Hilsenbeck.

Hoje, no Castelinho, os moradores de rua conseguem pegar água e, quem tem a documentação pessoal regularizada, fazer o cadastro ao auxílio emergencial de R$ 600 fornecido pelo governo federal.

Para conseguirem tomar banho, as meninas da Marechal caminham até a praça da República, também no centro, e acessam uma instalação com banheiros provisórios, uma das iniciativas da gestão Bruno Covas (PSDB) no enfrentamento à pandemia.

O número de pessoas trans também aumentou em outro endereço do centro: a praça da Sé.

Não há mais turistas no local, que abriga a Catedral Matropolitana e que ficou famoso também por ter sido sede dos comícios pelas Diretas-Já nos anos 1980, e onde está situado o monumento do marco zero da cidade de São Paulo. Moradores de rua tomaram o pátio central da praça, as escadarias e a porta de entrada da catedral, também fechada por causa da pandemia.

Debaixo de três palmeiras imperais da praça, formou-se a “maloca do coqueiro de baixo”, também com mulheres trans em maior número. Lá, a Folha encontrou Gisele Carvalho de Lima, 20, a única do grupo que usava uma máscara de pano. “Eu achei ela lacrada dentro de uma sacola encostada ao lado de um poste no chão”, conta.

Gisele morava em Guaianases, na zona leste, mas foi expulsa de casa por familiares após a mãe dela morrer, em fevereiro de 2019. No primeiro ano nas ruas, já enfrentou sífilis e, agora, batalha contra a tuberculose.

“Depois que começou essa pandemia, acabou tudo. A gente não consegue comer, beber direito e todo mundo tem que ficar separado, mas não funciona aqui”, afirma.

Flávia Sampaio, 44, sem-teto há 30 anos e uma das líderes da “maloca do coqueiro de baixo”, diz à Folha que o distanciamento social recomendado pelas autoridades de saúde não se aplica aos moradores de rua por um motivo: o frio. “A gente se embola à noite. Um fica perto do outro para se esquentar.”

Kenedy Joventino, 47, também integrante do grupo, acha que pegou “esse coronavírus que todo mundo está falando”. “Tossi muito, senti febre e tomei uma dipirona nos últimos dias. Passou.”

“Todo mundo aqui também sentiu a mesma coisa”, diz ele, apontando para o pessoal da maloca amontoado debaixo das palmeiras. “E dizem que tem que ficar distante, né?”

1,9%
é a estimativa de participação de pessoas trans no total da população brasileira

210 milhões
é o total de habitantes do Brasil

35 anos
é a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil

76,3 anos
é a expectativa de vida da população brasileira

124 casos
de assassinatos contra trans foram registrados em 2019 no país

0,2%
é a participação de estudantes trans nas universidades federais brasileiras

Fontes: Antra, Andifes e IBGE

Dados do censo da prefeitura mostram que a população de rua na cidade chegou a 24.344 pessoas em 2019 —uma alta de 53% em quatro anos. Em 2015, as pessoas nessa situação somavam 15,9 mil.

Reportagem da Folha mostrou que o número apresentado pela prefeitura foi contestado pelos próprios recenseadores, que afirmaram que os dados não representam a realidade.

Nessa contagem, não se detalhou a situação da população T de rua. Em janeiro, um mapeamento que buscava saber quantas são e como vivem as pessoas trans na capital foi iniciado, mas o trabalho de campo da pesquisa foi paralisado na pandemia.

É por isso que Ricardo Dias, coordenador de políticas LGBTI da gestão Covas, recomenda que as trans de rua procurem os serviços públicos de assistência.

“É a forma mais rápida que elas têm de receber informações sobre onde encontrar um chuveiro, uma pia, um acolhimento seguro e uma refeição gratuita”, afirma.

Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), diz estar acompanhando o desmantelamento, em plena pandemia, dos serviços na Cracolândia, região onde também estão as pessoas trans mais vulneráveis.

“Numa crise sanitária como essa, é obrigação do poder público abrir o seu guarda-chuva para proteger os mais fracos. Quando ele não se apresenta, é a população que tem feito a diferença. Uma pena.”

A Smads (secretaria de assistência social da prefeitura) afirma, por nota, que oferece aos moradores de rua todos os serviços de assistência disponíveis, mas que a adesão é voluntária.

Na região da Sé, onde a reportagem esteve, a secretaria informou que, das 225 pessoas trans abordadas, 45 aceitaram acolhimento na primeira quinzena de abril.

Em Santa Cecília, onde está localizada parte do elevado Presidente João Goulart, das 873 abordagens realizadas, 569 optaram pelo acolhimento, e outras 511 buscaram outros serviços, como internações e regularização da documentação.

Para a população trans, a cidade de São Paulo só possui duas unidades da Casa Florescer, especializada em acolhimento, com 30 vagas cada uma.

A pasta informa ainda que mantém 31 serviços direcionados às mulheres, somando 2.546 vagas. Também diz que criou sete novos equipamentos emergenciais com mais 594 vagas para pessoas em situação de rua.

Da praça da Sé, a jovem Gisele vê o novo coronavírus só como mais uma dificuldade em seu cotidiano. “Dói saber que nunca mais voltarei para Guaianases, mas na maloca eu sou amada. É isso que me mantém de pé.”

LOCAIS DE ASSISTÊNCIA PARA A POPULAÇÃO LGBTI DE SÃO PAULO

Centro de Referência e Defesa da Diversidade
R. Major Sertório, 292 – Vila Buarque (centro)
aberto até as 22h, de segunda a sexta

Centro de Cidadania LGBTI – Leste
Av. Nordestina 496 São Miguel Paulista
aberto das 9h às 18h, de segunda a sexta

Centro de Cidadania LGBTI – Norte
Pça. Centenário 43 – Casa Verde
aberto das 9h às 18h, de segunda a sexta

Centro de Cidadania LGBTI – Sul
R. Conde de Itu 673 – Santo Amaro
aberto das 9h às 18h, de segunda a sexta

Fonte: Folha de São Paulo

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